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quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Quando o sertão parece o mar...

"Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!

Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!"

Quando eu soube, na manhã desta terça-feira, que minha avó tinha partido, por incrível que pareça, foram nesses versos de Casimiro de Abreu que eu pensei. Quando eu era pequena, talvez tivesse os oito anos que o poeta mais ingênuo do Romantismo Brasileiro menciona, minha avó me ensinava incessantemente essas linhas. Eu, menina de apartamento, não poderia associar minha infância tão eletrônica da década de oitenta a bananeiras e laranjais. Tampouco sabia o que significava fagueiras.

Mais tarde, na faculdade, recebi com imenso carinho as lições sobre Casimiro. Achava-o já até meio íntimo. Como se partilhássemos um passado em comum. Uma piada interna. Eu ria, confidente dele, das suas parcas tentativas de explicar sentimentos e sensações que não conhecia. Morreu tão jovem. Aos 23. Queria falar de amor e de sexo, ossos do ofício de poeta. Mas era tão menino que seus poemas mais bonitos eram sobre suas brincadeiras infantis. 

Casimiro me parecia ingênuo e inocente, jamais alcançou a eloquência de um Álvares de Azevedo, mas arrebatou o coração de minha avó. Na medida em que eu crescia, eu entendia, que ela e ele tinham muito mais coisas em comum do que eu compreendia naquelas tardes de repetição. Primeiro, obviamente, que a infância evocada em "Meus oito anos" não era a minha, nunca poderia ser. Era a dela. E aquelas palavras tão lindas, repetidas cadentemente pela voz de uma criança, certamente a faziam retornar para a aurora da sua vida. Fico feliz de ter proporcionado esse retorno de alguma forma.

Além disso, minha avó escrevia versos, com a letra mais primorosa que conhecia, pois fora a perfeição da caligrafia aquilo que ela mais absorveu dos seus poucos anos de escola. Minha avó era tímida. Recusava-se a falar em público. Em casa, entretanto, no meio dos seus, sempre estava disponível para um bom papo. Assim como, na sua intimidade, mantinha um caderno com versos. Ela pouco nos mostrava esse objeto secretíssimo. Tinha vergonha. Quem não teria? Seus versos eram janelas de sua alma, palavras que a boca não dizia, que as obrigações não permitiam, mas que o coração palpitava até jogar no papel.

Herdei dela o gosto pelas palavras, por essa forma aqui de dizer, esse meio de comunicação em que ninguém interrompe  e as ideias fluem. Dizem que é coisa dos Fontenele. Que seja! Nomes são tão irrelevantes quanto a passagem do tempo. Na verdade, a única coisa importante e que faz algum sentido nessa vida é o amor. E, ainda assim, nós somos muito pequenos para entendê-lo em sua plenitude. Meninos que somos, assim como o poeta.

Mas cada experiência é um passo que se dá em direção ao entendimento. E eu vou guardar para sempre a longa caminhada que tive com minha avó. Sempre vou me lembrar, que eu sou uma mulher absoluta. Ela sempre me dizia isso quando eu chegava depois das dez em casa depois do estudo, do esporte ou de namoros. Que eu não dependia de ninguém. Era mais pejorativo do que empoderamento feminino, acreditem. Mas isso ficou em mim. Tive tempo para digerir essa ideia e a aceitei. 

E, lá no fundo, eu sei que a dona Luíza admirava esse meu ímpeto de descobrir o mundo e ser independente, ela só não queria que eu me machucasse ou que metesse os pés pelas mãos. Tanto que, numa de nossas conversas na hora da Malhação, ela me disse uma vez: "Priscila, se eu ligar para você e você estiver em uma situação que não queira me contar, não se incomode, pode mentir. Eu só estou ligando para saber que você está bem". Entendi a mensagem rigorosamente. Entendi também que amar é permitir e aceitar as diferenças. Nunca decepcionei minha avó nesse sentido.

Muito obrigada pelo título, vó. E saiba que seu pouco estudo e suas inúmeras limitações sociais de ontem permitiram que uma mulher como eu pudesse se sentir orgulhosa para abrir a boca e falar. Aqui. em uma sala de aula. No meio da rua. #somostodasabsolutas

Outra coisa que pretendo levar comigo são as longas histórias sobre a infância e a adolescência dela. Minha avó foi pobre de só ter um sapato que ela usava furado na sola para ir à missa. Por conta disso, era difícil, mesmo anos depois das vacas magras terem passado, fazê-la livrar-se de vidros vazios de perfume. Para quem não sabe, perfumes na penteadeira eram sinal de status nos tempos de guerra, o Iphone da época. Mesmo assim, sempre que me falava do passado, não era nunca a pobreza que sobressaía. 

Gosto muito de uma imagem mental que ela descrevia, quando o sertão parecia o mar. Infelizmente, embora tenha conhecido as paisagens, nunca vi o fenômeno. Minha avó dizia que quando era moça, ela e as negras preparavam o almoço dos trabalhadores, se não me engana a memória, esses homens lidavam com as carnaúbas. Antes de descer a serra levando a comida, ela gostava de observar lá do alto a ilusão que a neblina da Ibiapaba causava cobrindo o sertão seco lá embaixo, como se fosse um imenso mar. Segundo ela, era mais bonito que o próprio mar.

Meu desejo sincero é que ela tenha passado por lá e tenha visto mais uma vez essa beleza que Deus criou para todos nós antes de encontrar os seus. Tanta gente que (me perdoem o bom-humor) já estava morta de saudades dela. Os seus pais, os irmãos aos quais ela era devota, sua primogênita, amigos queridos de uma existência inteira e até a negra amada que a criou a quem ela chamava Mãe Neném. Tenho certeza que teve festa. Com quindim e acordeom tocando: Quem foi, quem foi que comeu cuscuz, foi, foi, foi, foi, foi o João da Cruz! Ficou faltando somente o parceiro... Que ainda está sob os nossos cuidados por aqui. Vamos aguentar sua rabugice por mais um tempo. Se Deus permitir. 

Enquanto isso, nós continuamos na carne. Mais unidos do que ontem. Cientes do privilégio que foi a convivência. Desses anos bônus da presença dela que serviram para colocar tudo no lugar e garantir que estivéssemos bem para enfrentar essa breve despedida. É certo que um dia a gente se encontra de novo. Hoje a saudade dói um pouquinho, mas a alegria de ver todo o amor plantado florescendo é ainda maior. 

Foi o velório mais lindo em que já estive. Não que eu tenha ido a muitos. Mas a sensação era tão real de dever cumprido que dava para tocar. Ninguém ali dentro tinha outro interesse que não fosse o gostar e o querer bem. E nos permeava a certeza de que a sua hora realmente chegara. Vai com Deus, meu amor. Você não deixou para trás nem sequer um pingo de revolta. Arcou com todos os seus compromissos. E, quando eu me for, que eu tenha o prazer de seguir os passos teus. Porque amar, vó, sua última lição, é estar pronto para deixar a vida seguir seu curso.

Termino meu texto com um escritor que me arrebatou bem mais que Casimiro, Guimarães Rosa. Ele diz assim "O mundo é mágico. As pessoas não morrem, ficam encantadas". E, repito as palavras da prima Carol, agora o seu encanto está em todo o lugar, basta ter os olhos para ver, os ouvidos para ouvir e o coração infantil "que os anos não trazem mais" para compreender essa mágica.