I
Meu nome é Adriano. Costumava ser médico,
marido e pai. Eu tinha uns trinta e quatro anos quando morri no início do
século vinte um. Morri em um acidente de carro. Eu voltava para casa de manhã
depois de um plantão longo e cansativo. Um plantão cheio de vítimas de acidente
de carro.
O motorista embriagado atravessou o
sinal em alta velocidade. Não vi nem senti nada. Apenas acordei e percebi que
estava morto. Não convém falarmos desse processo, afinal, este não é um blog
espírita. Mas, fica a dica. Se eu continuo aqui para te dizer alguma coisa é
porque algo existe por detrás do véu.
Com relação ao motorista, ele
sobreviveu. Já tive bastante raiva desse cara. Principalmente quando eu ainda
pensava que era por causa dele que eu não veria meu filho crescer. Enfim,
percebo hoje que nem uma folha cai de uma árvore sem a permissão de Deus. Se eu
morri, era a minha hora. Só posso me conformar. Acho que me conformei, mas não
posso negar, não é uma tarefa fácil.
Eu amava demais meu filho. E não era
desses amores de orgulho do filho macho não. Era encontro de almas mesmo.
Quando eu segurei o Vinícios pela primeira vez nos braços, eu entendi o que era
a eternidade. Eu sabia que estava reencontrando alguém muito querido. Alguém que
fez parte das minhas vidas. A gente se entendeu pelo olhar desde suas primeiras
fraldas sujas da madrugada que eu fazia questão de trocar.
Ele era um garoto incrível. Inteligente,
companheiro ao extremo, divertido. Na verdade, ele ainda é tudo isso. Quem não
é mais, sou eu. Vinícios virou um rapaz lindo. Lindo mesmo. Eu morri, posso
falar sem falsa modéstia, pois esse tipo de coisa é para os vivos: meu filho é
um cara presença. A mulherada cai matando. Fico muito orgulhoso de ter
contribuído pelo menos com isso na sua formação, pelo menos com o DNA. Ele tem os
meus olhos e os meus dentes. No mais, para sorte dele, fisicamente, parece com
a mãe. Garanto a vocês, a mãe de Vinícios é uma mulher espetacular. Uma morena
esguia e torneada que faria meu corpo, se eu ainda tivesse um, estremecer.
Entre nós dois sempre foi assim.
Lembro-me de que ao conhecê-la, eu, um cara tão certinho, estudante de
medicina, noivo de moça direita de sociedade, só pensava em puxar seus cabelos
enquanto me satisfazia de prazer com cada detalhe daquele monumento feminino. Era
impossível me concentrar no que quer que fosse que ela estivesse falando. Na
minha mente só vinha sexo, sexo, sexo.
Antes que a gente descreva aqui mais 50
tons de cinza, devo esclarecer que eu era um bom moço, não um tarado. Sempre me
considerei racional. Chegava a ser previsível em minhas atitudes, eu sempre
fazia o certo. Até hoje, não sei explicar o que aconteceu comigo. Eleonora
mexeu com o que havia de mais primitivo em mim. Com ela, eu me descobri bicho,
eu me descobri homem.
Conheci Eleonora no auge dos meus vinte
sete anos, eu não era nenhum menino, já fazia residência médica, e estava de
casamento marcado com a Gisele para dali a quatro meses. Meus pais adoravam a
Gisele, a educação da Gisele, a família da Gisele e mais ainda o dinheiro da
família da Gisele. Não que a minha família precisasse de mais dinheiro. Meu pai
é um dos maiores advogados do país. Acho que meu pai e minha mãe simplesmente
aprovavam uma relação que na cabeça deles seria boa para todo mundo.
E eu mesmo, bem, eu também gostava da
Gisele. Ela era uma moça muito educada. Tinha um sorriso encantador. Era um
amor de pessoa. Ela me fazia muito bem. Preocupava-se comigo. Tomava conta dos
meus compromissos. Enfim, sei que Gisele seria uma esposa maravilhosa. Tanto
sabia que a pedi em casamento. E não fui forçado a isso não. Pedi porque quis. A
gente namorou por mais de quatro anos. Era natural que a gente casasse.
Entretanto, depois daquele encontro com Eleonora, pareceu-me muito mais natural
fugir com ela para o meio do mato e esquecer que a humanidade existia.
Eleonora fora a professora de dança
contratada por Gisele para nos ensinar a dançar a valsa do casamento. Gisele
era perfeccionista. Estava cuidando de cada mínimo detalhe da festa. Depois de
ter visto meu irmão mais novo dançando no nosso jantar de noivado, quis
contratar uma professora para nós dois. Artur andava enrabichado por uma moça
que dançava também, estava fazendo aulas de dança de salão e ensaiava com muito
afinco para impressioná-la. Eu ria muito quando o pegava dançando todo sério
pelos corredores. Pelo jeito, suas aulas deram resultado, porque o caçulinha da
mamãe arrasou na performance com a obesa Tia Teresa, convencendo Gisele da
necessidade de aulas com uma profissional.
Ela deve ter se arrependido da
contratação, é claro. Assim que Eleonora entrou no meu campo de visão, o resto
do mundo parou de fazer sentido. Isso ficou meio óbvio pela minha reação. Eu me
comportei como um animal faminto que encara a presa. Eleonora tentou ser
simpática e profissional, mas ela também não conseguiu. Nós fomos atraídos um
para o outro com violência. Seus olhos não saíram dos meus por nem sequer um
segundo. E quando ela foi me ensinar a
postura inicial da dança, sua cintura foi a primeira parte do seu corpo que eu
tomei com minhas mãos.
Três meses dali, eu fugi de casa para me
casar com ela. Um pouco mais de um ano depois, eu segurava Vinícios no meu
colo. Resistir teria sido inútil da minha parte, da parte dela ou da parte de
Gisele. Mesmo assim, coitadinha, ela ainda tentou.
Eleonora era mais nova do que eu cinco
anos. Se eu não entendi a reação do meu corpo, imagina ela. A essa altura da
vida, já era uma professora experiente. Conhecera nos seus anos de dança vários
rapazes desejosos de possuí-la. Só nunca sentira antes atração tão forte por um
deles. E eu, apesar dos meus olhos verdes muito claros pedirem mais e mais,
comportei-me como um cavalheiro na frente da minha noiva. Não mexi um
centímetro de mão além do que me foi ensinado. Mas nem foi preciso fazê-lo, depois
que a enlacei em meus braços, nós já pertencíamos fisicamente um ao outro.
Depois da aula, Gisele me afastou do
jardim às pressas, falou mil impropérios sobre Eleonora. Criticou do salto
desgastado ao cabelo solto. Eu não ouvi uma palavra. O estrago já tinha sido
feito. Eu nuca mais seria capaz de ver minha noiva como mulher. Aliás, enquanto
eu vivi, nunca mais consegui enxergar outra mulher que não fosse Eleonora.
Como um viciado, eu precisava de mais
pele, de mais contato. Disfarcei o quanto pude, inventei uma emergência, fingi
que iria para o hospital. Fui para a academia que meu irmão frequentava. Eu
nunca tinha ido lá de fato, certa vez, ao passar pela rua, Artur mencionara que
era ali, eu nem saberia dizer como me lembrava o caminho, praticamente, eu a
seguia pelo cheiro. Louco, percorri as salas uma a uma. Na última, encontrei
Eleonora. Ela estava dando aula para quatro casais de adolescentes. Disciplinados,
os rapazes e moças seguiam uma coreografia elaborada de tango. Ela marcava o
ritmo dos passos batendo com um bastão no chão. Ao me ver parado na porta,
levou as mãos a boca e deixou o bastão cair no chão.
─ O que você está fazendo aqui? –
Perguntou. Ela também fizera muito esforço para se controlar durante a tarde em
minha casa. Deu graças a Deus quando a moça detestou a aula e desistiu do
pacote. Não pretendia interferir na felicidade de ninguém e se continuasse a
dançar comigo, bem, aconteceria exatamente tudo aquilo que de fato aconteceu.
Por tudo isso, enfrentar-me mais uma vez era tudo que ela não queria.
Eu entrei na sala de aula sem pedir licença
e sem tirar meus olhos dos dela. Nem que eu quisesse eu conseguiria tirar meus
olhos dos dela.
─ Você esqueceu uma coisa lá em casa,
professora. – Encontrei forças para ser brincalhão e provocativo. Eu sou
naturalmente brincalhão e provocativo, mas não estava no meu natural naquela
hora. Eleonora nem falou coisa alguma, ficou me encarando com uma cara danada
de “o que?”, afinal, ela não sentira falta de absolutamente nada. – Você se esqueceu
disso aqui. – Depois da frase de efeito, eu praticamente a agarrei no meio da
sala e tasquei-lhe um beijo que nem eu mesmo me sabia capaz de dar. Lembro bem
de ouvir a quilômetros de distância os aplausos dos adolescentes.
Foi a experiência mais excitante de toda
a minha existência. Cheguei a sentir dor física tentando separar minha boca da
dela, meu corpo do dela, minha alma da dela. Eu já tinha me apaixonado algumas
vezes na vida. Sempre fui um cara romântico, cuidadoso, que repara nos
detalhes, mas aquilo foi totalmente diferente. O amor é um negócio totalmente
diferente.
─ E aí, você quer que eu espere lá fora
ou que eu desapareça das suas vistas para sempre? – Perguntei depois do beijo.
Coitadinha da minha futura mulher, não conseguia nem respirar direito, quanto
mais raciocinar. Fui esperto, confesso. Eu não queria mesmo que ela
raciocinasse, se fizesse isso, era capaz de não me querer. E eu precisava e
muito que ela me quisesse.
─ Acho... – ajeitou delicadamente os
cabelos negros e lisos enquanto recuperava o fôlego e a compostura – que depois
desse beijo, o mínimo que o senhor pode fazer é me esperar lá fora bem
quietinho até que eu termine minhas aulas.
Esperei felicíssimo até dez e meia da
noite. Nem fome eu senti. Contei cada estrela do céu rememorando aquele beijo
mágico. Meu coração vinha na boca de tanto que batia. Eu já tinha vinte e sete,
mas voltei a ser adolescente. A mão suava, o corpo estremecia, o tempo não
passava. Até que ela apareceu, eu já tinha mil declarações de amor prontas para
serem ditas, nenhuma palavra foi mencionada. A boca dela procurou a minha e
essa foi a declaração mais bonita de todas.
Terminei meu relacionamento com Gisele
na mesma semana. Teria terminado antes se ela não tivesse passado tantos dias
tentando fugir de mim e daquilo que ela saberia que eu iria dizer. Meus pais
surtaram quando descobriram. Era escândalo em cima de escândalo. Palavras duras
que nem me atingiam. A essa altura, eu já tinha a medida de todas as coisas. Eu
já tinha certeza. Eu já sabia de tudo aquilo que mais importava no mundo. Eu já
sabia exatamente o peso do corpo da minha mulher em cima do meu.