─ Por que é que você está chorando?
Aquele menino de olhos verdes imensos se
aproximou dela sem pedir licença. Vinha segurando um saco enorme de Cheetos e
comia sem dar a mínima para a quantidade de calorias no pacote. Ele era magro,
esquelético, um saco de ossos, na verdade. Mas aqueles olhos, nossa, que olhos!
Eles tinham uma fúria. Uma coisa meio diabólica. Sei lá. Era como se aqueles
olhos guardassem todo o ódio do mundo.
Por um instante, pensou em ter medo
dele.
─ É muda, menina? Eu perguntei por que é
que você está chorando? – O tom de voz era grosseiro, só que algo ali naquele
quadro não parecia real. E ela era boa em observar pessoas. Tinha só oito anos
de idade, mas era boa em reconhecer mentiras. E o menino na sua frente era uma
farsa. Podia apostar sua coleção de revistinhas da Turma da Mônica que era.
Para começo de conversa, dos meninos
idiotas da sala dela que estavam jogando futebol, parecia que somente ele percebera
que ela estava chorando. E olha que ela disfarçava muito bem. Sabia chorar por
dentro com um sorriso nos lábios e convencer até o seu avô de que não ficara
magoada com as brincadeiras sobre o seu peso.
Há quem diga que a infância é o melhor
tempo da vida. Ana Maria sabia que isso não era a verdade. Por conta de uns
quilinhos a mais, ela descobriu muito cedo que a maldade humana se esconde nos
rostinhos angelicais de menininhas de bochechas rosadas e rabos de cavalo.
Descobriu que o diabo deve ter por volta de oitos anos, porque ninguém é tão
ruim quanto às crianças dessa faixa etária.
─ Não estou chorando. – A menina se
levantou zangada. Limpou as lágrimas com as costas das mãos. Era maior do que
ele.
─ Está sim. – Ele balançou a cabeça
muito ciente de que estava falando a verdade como fazem todos os garotos de
oito anos que estão falado a verdade. – Você está com a cara toda vermelha.
Está fungando. E isso aí na sua mão são lágrimas. Você está chorando sim. –
Empurrou um punhado de Cheetos na boca.
─ Estou doente. Estou com dor de cabeça.
– Usou a justificativa da mãe para fugir de todo os problemas. Ninguém pergunta
mais nada quando a outra pessoa está doente.
─ Mentira! – Os olhos verdes do menino,
muito escuros, estavam olhando direto para ela. Para dentro dela. A maneira
como ele disse que era mentira também a assustara. Havia raiva demais naquela
palavra. Não era comum ver crianças com raiva. A maldade delas era por prazer,
não por raiva. O menino tinha raiva. Mais uma vez o medo veio na garganta. Mais
uma vez ele não chegou na cabeça. Precisava se lembrar que sua primeira
impressão foi a de uma farsa.
─ Não sou mentirosa. – Ana Maria o
encarou. Devolveu o olhar com a mesma raiva. Não era comum ver crianças com
raiva, mas ela conhecia esse sentimento. Era muito fácil deixar ele vir. Ela tinha
tantos motivos para ter raiva que se aquele menino queria brigar, que
brigassem. Descontaria naquele saco de ossos todos os insultos, todas as
brincadeirinhas das menininhas das bochechas rosadas sobre o seu peso.
─ É sim. – Ele continuava com toda a
razão do mundo. – Você estava chorando porque aquelas meninas te chamaram de
rolha de poço, de baleia, de balofa...
─ E você? – Ela interrompeu a lista de
xingamentos que já conhecia de cor. – Veio aqui me aborrecer também? – Gritou com
ele.
Ela desabou no chão. Não segurou mais as
lágrimas. Estava tão cansada daquilo tudo. Por que ela não podia ser magra como
as outras meninas? Por que ela tinha de ser a fofinha da mamãe? A gordinha da
vovó? A pesadinha do papai? Ela só queria que por um instante ela pudesse ser
somente a Ana Maria. Não compreendia, na sua meninice, por que o seu peso
incomodava tanto as pessoas. Ia descobrir depois que o que tanto incomoda é a
diferença.
O menino sentou-se do lado dela. Ficou
ali calado. Não a tocou. Não tirou brincadeira. Ficou comendo o Cheetos tubinho
por tubinho. Os alunos estavam indo embora. Nem os pais dele nem os pais dela
apareceram. Os pais dela estavam trabalhando feito loucos para comprar um
apartamento, a escola nova toda chique levara boa parte do orçamento deles, mas
era prioridade. Já tinham conversado com ela sobre um transporte escolar, mas
não haviam tomado providências, portanto, vinha esperando bastante por eles. Os
motivos da espera do menino ela não conhecia.
Ficaram os dois ali por um bom tempo.
Ela chorando. Ele comendo Cheetos. Até que ela se acalmou e ele ofereceu o
salgadinho inclinando o pacote na sua direção. Ana pegou um punhado de
tubinhos. Estava com fome. Agradeceu com um sorriso e tomou um susto, os olhos
do menino não estavam mais escuros. Continuavam verdes, mas agora eram claros,
translúcidos.
─ Meu pai morreu. – Ele disse. Disse com
a mesma simplicidade que se diz que se comprou um pacote de bolachas no
supermercado. Ela não sabia o que dizer nessa hora. Não sabia ao certo o que
era a morte. Nunca perdera ninguém. Mas vira em um filme que se dizia “sinto
muito”.
─ Sinto muito... – Hesitou. Não se
lembrava do nome dele.
─ Vinícios. Meu nome é Vinícios. E o
seu? – Continuavam comendo o pacote de Cheetos, cúmplices, velhos amigos, como
só as crianças sabem ser em tão pouco tempo.
─ Ana Maria.
─ Eu não achei legal o que aquelas
meninas fizeram com você.
─ Também não achei.
Mais tempo. Mais Cheetos.
─ Você vai falar com a diretora? – Ele retomou
o assunto. – Elas empurraram você do escorregador. Você poderia ter caído.
─ Mas eu não caí. E nem vou cair,
Vinícios. Não é qualquer magricela que vai me dizer o que eu posso ou não posso
fazer nessa escola. O escorregador não é delas. O meu pai também paga essa
escola. Eu também tenho o direito de usar. Sendo gorda ou sendo magra. Não é
verdade?
─ Não sei. Meu pai não paga essa escola.
─ Desculpa. Eu me esqueci.
─ Tudo bem. É meu avô que paga...
─ Ah! Eu gosto do meu avô.
─ Eu detesto o meu.
Mais Cheetos. Mais tempo.
Os tubinhos finalmente acabaram, mas
aquela amizade estava apenas começando.
curti! e cadê o livro? vc não me mandou, ou não chegou...
ResponderExcluirÉ muito parecido com uma parte da minha infância,gostei muito.
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