─ Jota, você me ajuda com o dever de
Português?
─ Claro. – Ele estava desenhando uns
arabescos no último espaço em branco que havia no seu tênis da escola. – Manda?
─ Romantismo...
Estavam esperando o pai de Taís passar
para buscá-la. Faziam isso todos os dias. O pai só chegava perto de uma da
tarde. Joaquim até dispensava a carona da mãe e ia de ônibus para casa só para
passar esse tempo sozinho com ela. Taís aproveitava a companhia para agilizar
os deveres.
─ Minha terra tem palmeiras,/ onde canta
o sabiá... – Começou a declamar a Canção
do Exílio de Gonçalves Dias, ela o interrompeu.
─ Não. Nada disso. A segunda fase.
–Balançava a cabeça em negação. A fase indianista da poesia romântica ela já
tinha entendido, não tinha mesmo muito que entender. Mas essa segunda fase a
deixava intrigada.
─ Amor e morte? Ultrarromantismo? Minha
favorita. – Ele sorriu.
─ Como você pode gostar disso. Não
consigo entender esse negócio... É uma verdadeira bobagem sem fim.
─ Taís, nada mais romântico do que
morrer de amor. – Joaquim se levantou e seus olhos brilharam. Gostava mesmo dos
poetas boêmios que morriam tão jovens. Ele se identificava com a intensidade
com que viveram suas paixões. Começou a recitar com o entusiasmo típico dos
românticos o poema de Álvares de Azevedo. – Amemos! Quero de amor /Viver
no teu coração!/ Sofrer e amar essa dor/ Que desmaia de paixão! – Ele se levantou de supetão a levantando
também, tomou a mão de Taís entre as suas. Beijou-a – Na tu'alma, em
teus encantos /E na tua palidez/ E
nos teus ardentes prantos / Suspirar
de languidez! /Quero em teus
lábios beber / Os teus amores do
céu,/ Quero em teu seio morrer /No
enlevo do seio teu! – A maneira como ele
olhava para ela enquanto falava a deixou vermelha. Nunca tinha visto Jota tão
envolvido com um poema assim. E já o vira recitar várias vezes. – Quero
viver d'esperança,/Quero tremer e sentir!/ Na tua cheirosa trança / Quero sonhar e dormir! / - Ele puxou delicadamente a trança enorme
de cabelo de Taís. – Vem, anjo, minha donzela, / Minha'alma, meu coração! / Que noite, que noite bela!/ Como é
doce a viração! / E entre os
suspiros do vento/ Da noite ao mole frescor, /
Quero viver um momento, /Morrer
contigo de amor!
─ Como é que tem espaço nessa sua cabeça
para tanto verso decorado? – Perguntou enquanto aplaudia a interpretação
entusiasmada.
─ Não é na cabeça que guardo os versos,
Taís. É no coração. – Respondeu sem titubear.
─ Bom. – Ela sorriu e o tocou bem do
lado esquerdo do peito. – Isso explica muita coisa. Eu sei que você é uma das
pessoas mais inteligentes que conheço, mas, sem sombra de dúvida, seu coração é
de uma imensidão ainda maior do que a sua capacidade de pensar...
Joaquim ficou bem desconfortável com as
palavras dela. Eram palavras carinhosas de amigo. Um gesto gentil. Mesmo assim,
elas o atingiam profundamente. Bem no altar que erguera dentro de si para
aquela garota. Suas palavras gentis eram como bênçãos para ele.
Mudou de assunto. Fingindo que não
estava abalado. Perguntou sobre o dever.
─ Como se pode falar de amor e desejar a
morte? Não faz sentido. Amor é vida. É luz. É sol. Não é escuridão. Nem sombra.
Nem morte. – Ela continuou a agir naturalmente. Taís mostrou-lhe as questões no
seu caderno. – Amar é querer viver, não é não?
─ Ah! – Ele levantou os ombros
compreendendo a dúvida. – Mas você não acha há algo de sombrio no amor? Que
amar é matar um pouco de si em prol de dois? Que é a escuridão que acoberta os
romances insensatos e proibidos? Que morrer de amor é válido? – Defendia a
escuridão romântica.
─ Não acho que morrer deva entrar na
conta. É a probabilidade mais ineficaz de conquistar a garota. – Foi prática
como sempre. Joaquim até riu. Taís era parnasiana como as deusas deveriam ser.
─ Contas, probabilidade... Que papo mais
científico! Amar não é ciência. Não é razão. Para os românticos, não há
possibilidades a serem avaliadas. É tudo ou nada. Pois o amor tudo vence. –
Caminhavam lado a lado pelos corredores do colégio. – E o que ele não vence, a
morte acolhe. Por isso, morrer de amor é uma honra. É a glória.
─ Você fala de um jeito... Concorda com
isso? – Olhava para ele como se visse um E.T. Simplesmente não conseguia
compreender tantas camadas de “eu”. De singular. De imprevisível. De
indeterminado.
─ Tremer e sentir, sonhar e dormir? –
Citou novamente alguns dos verbos do poema que acabara de recitar. – Acho que
não é uma questão de concordar ou não. Como diria Shakespeare, é mais uma
questão de ser ou não ser assim.
─ Muita subjetividade pro meu gosto. –
Desdenhou. – E você não me respondeu. – Prática mais uma vez.
─ Sou um romântico inveterado, Taís. –
Fez uma mesura para ela e beijou sua mão mais uma vez. – Tenho que admitir.
Taís achou divertido o gesto do amigo.
Adorava esse tempo que passava com Joaquim. Chegava a gostar quando o pai se
atrasava um pouco mais do que o de costume.
Álvares de Azevedo |
─ Não adianta, Jota. Nunca vou conseguir
te entender. – Ela o abraçou e fez
estalar um beijo no rosto do amigo. – Somos opostos da mesma moeda. Eu sou o
sol e você é a lua.
─ Não diga isso, Tati. – Ele passou a
mão carinhosamente pelo rosto dela. – Você é apenas uma lua nova que ainda não
percebeu que a vida tem fases demais. – Os olhos de Joaquim estavam fixos nos dela.
Taís estremeceu. – E que não entendeu ainda que a escuridão também faz parte de
nós. Enfrentar o escuro é sinal de autoconhecimento. – O olhar do rapaz a
atingia como uma flecha. – Vencer a escuridão nos torna mais forte, minha menina
amada. E eu percebo toda essa força em você. Prestes a explodir. Quero
realmente estar por perto quando você florescer, Tati. Quando sua lua
particular estiver cheia.
─ Jota... – Ele conseguia deixá-la sem
palavras e sem ações. – Você tem tanta expectativa sobre mim. Tanta confiança.
– Ela o abraçou.
─ Tanta certeza.
─ E que razões você tem para isso, meu
amigo?
─ Estávamos falando exatamente sobre
isso, não era? – Ele riu. – Razão nenhuma. Apenas é o meu coração quem me diz.
– Apontou para si mesmo. – Romântico inveterado.
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