A paisagem continuava igualzinha. Nada
mudara naqueles cinco anos. Nada é exagero, ela era outra. Diz-se que o homem
não se banha duas vezes no mesmo rio. Pura verdade. Nunca será a mesma água,
nunca será o mesmo homem. Maria Lúcia não poderia mais ser a menina que deixara
aquele lugar.
A paisagem, entretanto, fazia surgir em
seus olhos uma lágrima discreta. Às vezes, a infância não nos abandona por
completo. Era esta a sensação que a acompanhava passando por aquela estrada
tantas vezes percorrida. Era a primeira vez que ela vinha à casa do seu pai
dirigindo um carro, embora conhecesse o caminho, não era exatamente a mesma
coisa.
Nos anos que passou nos Estados Unidos,
prometeu mil vezes vir nas férias. Mas as férias nunca vieram. Eram tantas
oportunidades imperdíveis. Cursos, palestrantes, oportunidades de estágio, que
um ano virou dois, três, cinco. E ela não voltara ao Brasil nenhuma vez sequer.
Não fosse a família ter ido visitá-la, morreria de saudades.
Saudade absurda como a que estava
sentindo da afilhada e da melhor amiga. Isaura e Laurinha não teriam condições
de arcar com uma viagem internacional. Passaram tempo demais apenas trocando
e-mail. Então, desejava imensamente o reencontro com as duas. Tanto, tanto, que
adiantou o retorno definitivo para casa em dois dias para poder estar com a
afilhada no seu aniversário de seis anos. Isaura não fazia ideia de que
chegaria de surpresa.
Aliás, nem o pai fazia ideia de que ela
já voltara para casa. Maria Lúcia simplesmente alugara um carro no aeroporto e
estava na estrada. Fora estranho, tivera que pedir uma permissão internacional
para dirigir, não tinha a carteira brasileira de habilitação. Morara fora por
muito tempo a ponto de se sentir estrangeira no próprio país.
Mas esse foi um sentimento que passou rápido,
pois assim que ouviu as primeiras palavras em português, seu coração bateu
apressado. Chegara, ali era o seu lugar. Não voltaria nunca mais ao estrangeiro,
a não ser a passeio. Não se arrependia, é claro. Tivera muitas oportunidades. Crescera
como profissional de uma maneira que o Brasil não podia proporcionar, mas o
preço cobrado era muito alto. Ficara longe demais daqueles a quem amava.
Era bem por isso que aquelas paisagens
lhe traziam lágrimas nos olhos. Saudades. Aprendeu amargamente que certas
pessoas deixam marcas profundas nas personalidades. E não pensava esse momento
em ninguém da sua família.
Ao passar pelo restaurante na beira da
estrada, onde anos antes pararam para lanchar numa noite fria, o coração deu um
pulo e o nome dele veio ao lábios sem encontrar força para sair. Não tinha
coragem suficiente par dizê-lo. Pensar nele era difícil. Pronunciar seu nome
tornaria aquela dor real demais.
Mesmo assim parou na lanchonete. Estava
cansada da viagem. Nunca dirigia tantas horas assim. Precisava esticar as
pernas, comer alguma coisa A lanchonete parecia ser o melhor lugar. Faltava
pouco mais de uma hora até estar nos braços carinhosos da avó.
Como acontece sempre nessas lanchonetes
de meio de estrada, tudo continuava exatamente no mesmo lugar. Ela sentou,
pediu um misto-quente, sanduíche tão brasileiro, um guaraná e aproveitou os
momentos e as lembranças.
Estava decidida: iria procurá-lo, pedir
perdão, implorar pelo seu amor. Ele não diria não. O sentimento que os unia não
era uma coisinha qualquer. O que eles viveram estava impresso na alma. Impossível
de esquecer. Precisava apenas de uns dias para se estabelecer. Para criar
coragem de encarar aqueles olhos verdes.
Pagou a conta. A tristeza passara. A
decisão de lutar lhe acalmava o coração. Não era mais a menina insegura. Assistira
vidas demais se perderem naquele hospital até entender que um segundo pode
decidir tudo. No jogo da existência, as apostas são altas. Ela não estava mais
disposta a blefar, muito menos estava disposta a perder.
Deu partida. O carro estancou. Alguma
coisa estava errada. Mesmo assim, com algum esforço, pegou. Ela não conhecia
bem os carros brasileiros. Se não fosse por um namorado, jamais teria sequer
aprendido a passar marchas, estava acostumada a carros automáticos.
Aquela falha lhe deixou meio insegura,
mas faltava pouco tempo até a casa do pai. Respirou fundo e acreditou que daria
para chegar. Enganara-se. Vinte minutos depois, o carro parava de vez. Maria Lúcia
fez o que pôde dentro dos seus poucos conhecimentos em mecânica. Em pouco
tempo, entretanto, desistiu e ligou para a seguradora. Estava presa na estrada
por pelo menos duas horas.
Ficou sentada olhando para o celular. Não
sabia se ligava ou não para o pai. O que ele poderia fazer, não é mesmo? Apenas
esperar com ela pela seguradora. E ainda estragaria a surpresa. Se não fosse
demorar muito, ela mesma esperaria.
Malu pegou o seu tablet e começou a ler um
livro qualquer. Nem deu por conta do tempo. Por isso, quando um carro
estacionou no acostamento logo atrás do seu, acreditou que se tratava da
empresa de aluguel.
Ela não conseguia ver o rosto do funcionário,
mas achou o carro muito elegante para uma seguradora. O rapaz usava uma calça
social preta e uma camisa de botão de manga longa que ele ia dobrando até o
cotovelo, enquanto caminhava até a janela. O traje não era muito apropriado
para a ocasião.
─ Moça, você está com algum problema? Eu
posso ajudar?
Foi somente quando aquela voz chegou ao
seus ouvidos que ela entendeu do que se tratava. O coração queria saltar pela
boca. Claro que ele também viria para o aniversário de Laurinha. Claro que ele
ajudaria qualquer pessoa parada com problemas mecânicos no meio da estrada.
Ela sentia todo o seu corpo tremendo. Precisava
criar coragem e baixar o vidro. Precisava encarar os olhos muito verdes e muito
claros de Vinícios. Ansiava por isso até. Mas a menina insegura de outrora a
impedia de se mexer. O corpo inteiro travara.
Ele já colocara as mãos na janela do
carro. Aquelas mãos tão queridas, tão amadas. Ela percorreu com os olhos cada
detalhe das mãos do rapaz que ela um dia amou tanto. O rapaz, como ela podia
ver através do fumê do carro, tornara-se um homem. Um homem belíssimo. Um homem
com uma aliança na mão direita.
Vinícios insistia do lado de fora. Solícito.
Educado. Como sempre. Perguntava se ela estava bem. Se ela precisava de ajuda. Não
podia vê-la direito. Ela não conseguia se mexer. Mas aquela aliança atirara na sua
cara a verdade. Maria Lúcia precisava tomar uma atitude antes que o anel
migrasse da mão direita para a esquerda. Baixou o vidro decidida a vencer.
─ Malu? – Vini não estaria mais surpreso
se encontrasse o espírito de Michael Jackson dentro do carro.