Tudo é cíclico. Vai e volta. Assim como as marés e o
movimento dos planetas, as histórias tendem a se repetir. Vendo a afilhada
enfrentar a entrada do colégio pela primeira vez, Maria Lúcia reconheceu tanto
de si mesma que até ficou emocionada.
A vida de Laura vinha sendo, desde cedo, uma mistura
equilibrada entre fracassos e conquistas. Exatamente como a vida de todo mundo.
Ela não reclamava. Não por isso.
Seu pai a abandonara quando ela nem tinha um ano.
Com quase onze, estava cansada de procurar e insistir. Que seguisse seu
caminho. Estava muito bem apenas com a mãe. Reconhecia o esforço dela, do tanto
que trabalhara para passar de manicure à dona de salão em tão poucos anos.
Laura sabia o quanto a mãe se esforçava para lhe dar
um futuro melhor. Sabia que Isaura não media sacrifícios para que sua filha
conquistasse tudo que desejava. E era por isso (e também pela ajudinha dos seus
padrinhos, Maria Lúcia e Vinícios) que ela estava ali no Colégio Santa Inês.
Diante daquela construção monumental, Laura ofegava.
Aquele colégio era a porta de entrada para a realização de todos os seus
sonhos. Queria estudar. Naquele momento, queria ser médica. Mas apenas porque
aquela era a carreira que todos diziam que mais precisava de estudos. Laura
estava aberta para um mundo de possibilidades, decidiria de fato quando
conhecesse as opções.
O Colégio Santa Inês era um dos melhores do país.
Dali saíram artistas famosos, saíram cientistas, médicos, políticos, atletas.
Tudo era possível para quem cruzava aquelas portas. Respirou fundo, deu uma
olhada no uniforme para ver se estava tudo no lugar e deu o primeiro passo, com
o pé direito.
Nem tudo era como Laura imaginava que fosse. Algumas
coisas eram ainda melhores. O colégio era lindo. Chegava até a esbarrar nas
colunas de tanto que se perdia olhando para os detalhes góticos da construção
antiga. Era tão grande, mas tão grande, que ela gostava de imaginar o quanto de
sua pequena cidade natal caberia ali dentro. Quadra, piscina, teatro, centro de
artes, parquinho de educação infantil, sala de música, laboratório disso,
daquilo e daquilo outro também, coral e jornal. Quantas vidas precisaria para
dar conta de tanta experiência?
Laura era dessas meninas empoderadas com um discurso
cheio de autoestima e relativização da meritocracia. Ainda assim, ela ficou com
medo quando a professora de Geografia, na primeira aula, começou a falar.
Estava acostumada a ser a melhor da turma. Estava naquele colégio com uma bolsa
de estudos. Mas nada a preparara para uma discussão acalorada sobre a atual
configuração dos grandes blocos econômicos. Mal identificava aquele monte de
siglas que seus colegas de sala pareciam conhecer tão bem.
Sentiu vontade de chorar, pois como a professora
disse, era apenas uma revisão, aula mesmo, somente no próximo encontro. Quase
uma hora de desespero depois, o professor de Biologia entrou. Ele apresentou a
disciplina que era nova para a turma. Laura respirou mais calma. Pelo menos,
uma novidade para todos, um começo igual a todo mundo.
Quando o professor disse que ia começar a explicar a
unidade, Laura tirou o seu estojo da Pequena Sereia repleto de canetas e lápis
incríveis que sua madrinha tinha dado. Estava ansiosa para usá-lo. Para
inaugurar seu caderno. Foi então que as luzes se apagaram e o professor começou
a tocar no ar, mexendo com uma lousa interativa. Ele falava sobre os ciclos
biogeoquímicos dos elementos e havia um modelo projetado no ar. Nele, o
oxigênio e o gás carbônico oscilavam entre, nuvens, vulcões, rios e animais.
Laura se desesperava tentando dar conta de copiar tudo até que alguém lhe disse
que o professor ia mandar aquele material por e-mail. E-mail. Laura nunca
precisara de um e-mail na sua escola antiga.
No intervalo, a ficha tinha caído. Não pertencia àquele
lugar. O seu sanduíche de atum contrastava com os smartphones de última geração.
Aqueles meninos falavam inglês fluentemente, alguns tocavam piano, outros
disputavam campeonatos de equitação, passavam férias na Disney ou em Fernando
de Noronha. Ela mal conhecia a cidade grande e nunca viajara de avião.
Quis realmente voltar para casa.
Lembrou-se da madrinha, ela lhe disse como foram difíceis
seus primeiros anos. Não podia imaginar o quanto, mas agora fazia ideia. Malu
lhe dera um estojo da Pequena Sereia. Laura nem gostava de princesas. Aceitou
porque a madrinha lhe dissera ser sua princesa favorita. Porque Ariel sempre
lutou pelo direito de pertencer a mais de um mundo. Agora ela entendia o que
isso significava.
O rosto amigo de Alice a acalentou. Não estava
sozinha. Precisaria fazer bastante esforço, mas conseguiria se encaixar. A
amiga a chamou para o seu parquinho favorito. Alice estudara naquele colégio a
vida inteira. Laura estudava no prédio dos grandes e dos adolescentes. Ela não
deveria mais brincar em parquinhos. Mesmo assim, subiu em um brinquedo de
escalar que parecia uma torre. Ficou lá pendurada. Vendo as outras crianças
mais novas que ela brincarem.
Foi quando um garoto da sala dela, um loirinho de
sardas perto no nariz, subiu no brinquedo com tamanha velocidade, fugindo de um
grupo que corria atrás dele, que pisou na sua mão. Laura, por reflexo de se
proteger, acabou se desequilibrando e caiu de costas no chão. O garoto olhou
para ela, meio sem saber o que fazer, mas decidiu continuar correndo do grupo
de amigos.
Alice veio em seu socorro. Ajudou Laura a se livrar
de parte da areia. A queda não foi grande, porém, foi feia o suficiente para
que alguns adultos viessem verificar se ela estava bem. Laura ficou com
vergonha.
─ Garoto idiota! – Alice disse. – Você quer ir na
coordenação denunciá-lo? Não se pode correr por aí fazendo parkour como se não
existisse mais ninguém no mundo...
─ Parkour? – Não sabia nem o que significava, como é
que ia denunciá-lo.
─ Um nome bonito para sair se pendurando nas
coisas...
Laura achou melhor não ir para a direção no primeiro
dia de aula. Não acontecera nada demais. Estava bem. Razoavelmente limpa. E não
precisava de uma inimizade. Preferiu entender que se tratava de um acidente. O
intervalo acabou e ela voltou para a sala.
Esperando na porta. O garoto do Parkour. Estava com
um grupo enorme. Todos pareciam idolatrá-lo. Ele sorriu quando a viu, não era
um sorriso amistoso. Laura estreitou os olhos.
─ Você caiu como uma jaca podre. – Todos os
coleguinhas riram da bobagem que ele dissera.
Podia ser uma caipira. Podia ser a menina pobre com
bolsa de estudos. Mas, definitivamente, não fora criada para aguentar desaforo
de menino. Não seria usada. Nem mesmo numa tentativa chula de autoafirmação masculina
infantil. Em um movimento rápido, Laura colocou o antebraço no pescoço do
garoto. Ele quase sufocou. Precisava ficar na ponta dos pés para respirar. Não
esperava o golpe.
─ Escuta aqui, metidinho, se você quer mostrar um
espetáculo para os seus macaquinhos de auditório. – Ela encarava os outros
garotos que estavam boquiabertos. – Saiba que vai precisar pagar o meu cachê,
porque ninguém nessa sala, e nem nesse colégio vai ser capaz de me prender numa
jaula ou me transformar numa aberração. Entendeu? – Só então ela o soltou.
O garoto recuperou o fôlego e não tirou mais os
olhos dela. Laura foi para sua carteira e ouviu duas colegas conversarem sobre aquela
baboseira de sempre, sobre como os meninos tratam mal as meninas que eles
gostam para chamar a atenção. Nunca gostara daquilo. Estava na hora das
mulheres recusarem certos tratamentos. Estava na hora de separar carinho de
agressão.
Assistiu ao restante das aulas com uma dose extra de
confiança. Ia vencer. Era determinada o bastante para conseguir.
Na manhã seguinte, completamente espantada, Laura
recebeu um bilhete carinhoso com um pedido de desculpas e uma rosa branca do
garoto que ela agora sabia se chamar Igor.
Porque, afinal, a vida encontra várias formas de se
repetir, mas algumas coisas simplesmente precisam mudar.
***
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