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sexta-feira, 22 de julho de 2016

RELICÁRIO


Ele tentava manter o foco, enquanto ela fazia as perguntas. Eram perguntas interessantes sobre empoderamento feminino, o esporte como ferramenta de desenvolvimento social, preconceito. Joaquim estava impressionado com a forma elegante e natural com a qual Taís abraçara o jornalismo. Seu pensamento de profissional estava ali, com ela, interessado em tudo que dizia. Já seu coração de menino...
Esse batia acelerado. Fugindo desesperado numa correria louca. Tentando escapar do que aqueles olhos azuis, aqueles cílios longos, aquela boca perfeita faziam com ele. Joaquim segurava o cabelo para que a mão não fugisse ao controle. E sorria. Até porque não conseguiria fazer outra coisa. Taís estava na sua frente. A pessoa que não lhe saiu da mente por nem um dia sequer. A mulher que ele via refletida na lua.
Não conseguia conter o desespero que a esperança lhe causava. Taís o procurara. Ela buscara a sua presença. Talvez sua chance de ser o alvo chegara. Esse pensamento lhe dava tremores e fazia seu coração disparar. Estava sem ar. Sentia calafrios. E ela perguntava sobre trabalho, sobre cinema, sobre futebol e carreira. Os olhos de caçadora sempre dentro dos dele.
Estava tímido. Incapaz. Respondia quase que mecanicamente. Perguntas tantas vezes feitas. Não era difícil buscar na memória a resposta padrão. Joaquim era a presa. Sempre fora. Estava acuado pela presença dela.
Taís aproveitara cada segundo do tempo. Profissional ao extremo. Sorrindo. Perguntando. E, ao mesmo tempo, reagindo aos sinais que o corpo dele dava. Jota sabia que não eram sinais bons. Ele estava com medo. E ela farejava o medo em cada hesitação. Quando alguém da produção gritou “two minutes”, quis morrer. Era pouco tempo para convencê-la a ficar.
Taís sorriu mais uma vez. Ela parecia tranquila, prática e inabalável como sempre. A deusa Ártemis dos seus inúmeros desenhos. A personagem que marcou a sua vida. Ela respirou fundo e fez sua última pergunta:
─ Joaquim, sou uma grande fã dos seus quadrinhos e essa é mais uma pergunta pessoal do que jornalística... – De repente, era essa a pergunta que mais o interessava responder. Ele sentou de forma mais atenta na cadeira. – Seus quadrinhos notadamente colocam as mulheres em primeiro plano e pouco tratam de relacionamentos amorosos. Eu acho isso incrível.
─ Acha? – Ele sorriu. – Nem todos os fãs pensam da mesma forma. Se quer mesmo saber...
─ Mas, por outro lado, sempre imaginei que existisse algo mais entre Levi e Diana. E, no entanto, depois que ela sai do ensino médio, eles simplesmente não se encontram mais. É só isso? – Ele se divertiu com a expressão do rosto dela. Era uma pergunta de fã. Estava orgulhoso de tê-la como admiradora. – Eles são perfeitos um para o outro e não percebem. Nunca vai acontecer? Ou será que o próximo longa será sobre um reencontro? Você pode me adiantar esse detalhe? – Colocou as mãos juntas como se estivesse em oração. – Por favor...
─ Eu adoraria te falar como essa história termina, Tati. – Criou coragem para tomar uma das suas mãos e entrelaçar seus dedos nos dela. Apertou forte. Naquele aperto, queria passar um milhão de sensações. – Mas nem eu sei essa resposta. – Encarou aqueles olhos azuis com coragem. Desejando que eles se perdessem na escuridão dos seus. Que entendessem o que estava bem ali, estampado em cada contração dos seus músculos. – Estou esperando que esses dois me digam o que vai acontecer faz bastante tempo. E a verdade é que está tudo nas mãos dela, porque ele é idiota e covarde demais para tentar...
Taís soltou a mão dele e se afastou. Algo no seu olhar de admiração quebrou. Não era mais a jornalista. Não era mais a fã. Era ela mesma. Um vislumbre da adolescente determinada faiscou pelo seu semblante. Jota teve medo de que ela saísse sem sequer se despedir. Ainda sabia reconhecer que estava zangada.
─ Levi inventa mil desculpas para não se declarar para Diana. Deve estar dando aula em uma universidade, olhando para lua e pensando nela. Jamais vai esquecê-la. – Continuou a falar. A coragem vinha de um lugar que ele mesmo não sabia de onde. – A verdade é que não se sente capaz de merecer alguém como ela. Nunca achou.
Ele esperava tudo, menos que ela se levantasse friamente, agradecesse a entrevista com um aperto de mão formal e mais nada. Tomou a direção da porta indicada pela produção. Taís nem olhou para trás. A ponta do salto dela marcava as pontadas de dor no coração de Joaquim. Ela desprezara a caça.
Jota se levantou. Não podia deixar que ela fosse. Que saísse de sua vida. Não novamente. Aí alguém lhe perguntou se queria alguma coisa. Se precisava parar e fazer um lanche. Despertou para a realidade. Tornou a sentar. Colocou a cabeça entre as mãos. Tonto. Covarde. Nunca fora um garoto covarde.
Mas agora deixava que ela fosse embora, porque não tinha coragem para ouvir mais um não. Não tinha mais estômago para que ela destruísse suas esperanças. Ia viver para sempre preso nessa ilusão de que um dia o quisesse. Estava inerte na sua frente. A presa perfeita. E a deusa o desprezara. Mais uma vez.
Os minutos foram passando e Joaquim se deu conta de que não conseguiria continuar o que estava fazendo. Não podia mais ficar sequer um segundo ali. Não tinha condições de responder nada. Pelo contrário, precisava era ouvir respostas. Nem deu muitas explicações, pegou sua carteira e desceu pelas escadas.
Ligou para Lorena como se a amiga pudesse resolver tudo em um passe de mágica. Como se ela tivesse todas as respostas. Ou, pelo menos, o número certo do telefone que ele precisava. Caminhava pelas ruas sem rumo. A cidade não era a mesma de tantos anos antes. Estava, sem sombra de dúvidas, perdido.
─ “A morte é para os que morrem”, Joaquim. – A voz dela o chamou de volta à realidade e ele se despediu da amiga imediatamente.
Taís estava em pé, do lado de uma barraquinha de cachorro-quente, com um sanduíche na mão. Tirara a camisa do uniforme e usava uma blusa num tom forte de rosa com as costas completamente nuas. Era tão linda e, ao mesmo tempo, uma imagem tão insólita com aquele cachorro–quente nas mãos, que arrancava olhares de admiração de quem passava na calçada e a percebia.
─ Não sou uma deusa. – Brigou com ele. – Nunca serei. – Deu uma mordida no sanduíche fazendo a mostarda espirrar no seu rosto. – Sou uma mulher normal e cheia de defeitos. Aprendi a lidar com isso a duras penas. – Explicou sem se incomodar de limpar o que estava sujo. – E não vou abrir mão de uma conquista dessas nem por sua causa...
─ Nem por minha causa? – Estava tão feliz que podia ficar ali o dia inteiro. Para ele, Taís e o cachorro-quente eram mais bonitos que a mais linda obra do Louvre. Sentou em uma banquetinha. Tati sentou de frente para ele. Ainda zangada.
─ Você tem essa capacidade de arrancar das minhas entranhas o melhor de mim. – Disse sem tirar os olhos dos dele. Certeira como uma flecha. – Adoro a pessoa que vejo refletida nos seus olhos e adoraria descobrir mais sobre ela e sobre nós dois. – O coração de Jota deu um salto com a expressão “nós dois”. – Mas já estou velha para mais uma furada, Jota.  – Balançou a cabeça com naturalidade. Deu outra mordida no sanduíche. – Quero parceria. Quero de igual para igual. Ou então não me interessa... – Taís o encarava com uma verdade que doía na alma. A sinceridade em estado pleno.
Jota a encarou enquanto ela mastigava a mordida. Esperou que ela tomasse um gole do refresco sem-vergonha que acompanhava o lanche. Pensava na perfeição de cada traço daquele rosto. A arte era impressionante, a arte o mantivera vivo, ele era feito de arte. Mas a realidade sabia ser bem mais surpreendente. Amava a Taís real ainda mais do que a que conseguira criar na sua cabeça.
─ Eu estava para ter um troço antes de te ver. – Ela confessou. – Te admiro do fio de cabelo desarrumado ao dedão do pé dentro desse tênis imundo, sabia? – As palavras jorravam dela impulsionadas pela raiva. – Queria poder dizer o quanto você significa para mim, o quanto me ajudou sem nem saber, falar o quanto estudei para fazer essa entrevista para que você não achasse que eu ainda sou aquela menina burra do ensino médio, queria agradecer por cada livro da sua lista maravilhosa que eu li, por cada palavra de incentivo escondida nos seus quadrinhos. Tanta coisa que nem sei... – Estava realmente zangada. Jota escutava com atenção encostado com os braços em uma mesa de plástico. – E você me vem com a deusa de novo. Com esses olhos que só enxergam o melhor em mim. Como se você não pudesse com os meus sentimentos... Como se eu fosse demais. Você sabe como eu me sinto, Jota? – Mordeu os lábios. Ele não fazia ideia. – Como se nada que eu tivesse feito e aprendido nesses anos todos fosse suficiente. – Despejou em cima dele. – Eu nunca serei essa pessoa que você enxerga. Nunca conseguirei alcançá-la. Ela é inatingível. – Taís o encarava nervosa. – E você prefere venerar essa deusa a ter coragem para me enfrentar de verdade. E isso me deixa puta pra caralho! – Jota riu. Ela se zangou mais ainda. – Tanto. Mais tanto. Que eu tenho vontade de esfregar esse cachorro-quente na sua cara.
─ Eu amo você, Taís. – Não precisava mais de coragem para dizer isso. – Amo de uma forma inconsciente, sem-razão, fora da lógica. Você se misturou em mim de um jeito que nunca consegui explicar. Entrou no meu peito e não saiu mais. – Olhava nos olhos dela. – Eu tenho muito medo do que sinto. Acho que sou capaz de deixar de ser meu tão idolatrado eu para ser quem você quer que eu seja... Isso me assusta.
─ Por outro lado, não faço questão desse sentimento se for para ser a única protagonista dessa história. – Pagou o lanche e se levantou. Joaquim viu a flecha incrível tatuada nas costas dela, no sentido da espinha. – Quero mais é que o Levi se foda se ele está por aí sentado numa banquinha de cachorro-quente esperando a Diana tomar a decisão de voltar e se tornar o grande amor da vida dele... – Taís começou a andar. – Para mim, Jota, quem não escolhe viver, já está morto.
─ Garanto que Levi está disposto a pegar um avião agora mesmo e se jogar aos pés dela quantas vezes for necessário até que Diana o aceite. – Segurou o braço dela.
─ Joelhos são totalmente dispensáveis. – Ela o encarou e os olhos deles se entenderam pela primeira vez. – Basta um beijo. Inesquecível como aquele que trocaram na despedida dele do ensino médio.
Joaquim deslizou as mãos pela cintura dela e as colocou dentro dos bolsos de trás das calças de Taís. Tati o enlaçou pelo pescoço. Queria beijá-lo, mas fez questão que ele tomasse a iniciativa. Jota a abraçou por completo, milhares de emoções explodindo em cada toque e quando as bocas finalmente se encontraram, ambos já sabiam que aquilo ali era amor. De verdade. E para sempre.


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