Milena estava inquieta naquela noite.
Procurava um lugar para sossegar, mas nada retinha sua atenção. Joana já
mandara centenas de mensagens pedindo para ela descer, inventou uma dor de
cabeça forte. Não iria se rebaixar a ficar ouvindo Felipe cantar, se mostrando
para todo mundo como ele gostava de fazer. Não na sua própria casa. Se queria
se mostrar, que se mostrasse na escola para aquele bando de meninas vazias que
não sabia nem se valorizar. Fazer isso na sua piscina, para os seus amigos, era
demais para ela.
André também sabia ser insuportável
quando queria. Para que aquela seresta logo ali? Não poderiam ir a qualquer
barzinho para ouvir alguém mais afinado tocando violão? Arrependeu-se do
pensamento. Sabia que o irmão não deveria frequentar barzinhos tão cedo. E,
além do mais, do pouco que ouvira da voz de Lipe, era injusto dizer que não
cantava afinado. A voz dele era máscula e encantadora.
Foi justamente para não ceder ao encanto
daquela voz que resolvera ficar no lado oposto da casa. Mas já era tarde, a
música entrara em seu coração. Ela precisava colocar para fora o sentimento. Desde
pequena a música a ajudava a se entender. Foi assim que conseguiu superar os
piores momentos da sua vida.
Sentou-se no piano branco da sala de
música, que fora presente do pai no seu aniversário de 10 anos de idade, tempo
em que ela se dedicava de verdade como toda boa moça de sociedade fazia no
século passado e como ainda era tradição na família de sua mãe.
No começo, a obrigatoriedade da tarefa
aborrecia Milena. Aos poucos, foi se familiarizando com o instrumento e passou
a sentir um prazer imenso em percorrer com os dedos as teclas brancas como se
fosse muito íntima de cada nota. Ainda praticava, mas sem a obrigação, apenas
para se sentir livre.
Naquela noite, Milena precisava sentir
essa liberdade. Começou a dedilhar suas músicas favoritas do Roupa Nova. Ouvia
as notas do piano e cantava as letras em sua cabeça. Com os olhos fechados,
entregue totalmente a melodia, Milena tinha um jeito de anjo.
Observando escondido pela penumbra da
sala anterior, Felipe estava boquiaberto, nunca vira criatura mais bela. Se
havia em seu coração alguma dúvida de que no meio da teimosia para ficar com a
menina mais popular do colégio, acabara se apaixonando por Milena, ela sumiria
ali, no instante mágico em que vira a garota mais linda de sua escola
dedilhando o piano com a mesma paixão com que ele acariciava as cordas do seu
violão. Mile, com seus cabelos claros, ondulados e soltos, sem maquiagem, com
seu vestidinho branco simples, era exatamente tudo aquilo que ele queria, para
além das aparências, para além do que qualquer um pudesse achar.
Não resistiu à tentação. Ouvindo os
acordes iniciais do belo dueto do grupo Roupa Nova com a cantora Claudia Leite,
resolveu arriscar e começou a cantar o trecho correspondente à parte masculina.
─ Ela sabe o jeito de agradar/ Um sorriso brincando no
olhar/ Me fascina com seu jeito de ser/ Ela é tudo enfim que eu preciso ter.
Milena tomou um baita susto. Não
esperava por ninguém para surpreendê-la num momento de tanta intimidade, quanto
mais aquele rapaz insuportável. Parou de tocar e fechou a cara. A música tinha
vários significados em sua vida que ela não queria compartilhar.
Rapidamente, ele se aproximou dela sem
nem se lembrar da aposta idiota com Guilherme e implorou:
─ Por favor, Milena. Daqui a pouco você
me dá mais um fora monumental do tipo que só você sabe dar, um daqueles que vão
ferir minha autoestima para sempre. – Ele falava com sinceridade. Era um pedido
verdadeiro. – Mas, por tudo que há de mais sagrado, não joga esse momento
mágico no lixo... – Felipe olhava intensamente nos olhos dela. Sempre fora
admirado por todos por sua coragem. Mile desviou o olhar. Algo naquele olhar
era incompreensível. O mistério o
seduzia ainda mais. – Deixa eu cantar contigo essa música? Deixa? Ninguém nunca
vai saber que você baixou a guarda, eu juro.
Sabe-se lá o que se passava no coração
de Milena. Não dava para raciocinar com ele assim tão perto dela, falando com
aquele tom tão sincero, talvez ela fosse fazer qualquer coisa que Felipe
pedisse. Talvez ela simplesmente o colocasse para correr dali aos gritos. Por
um instante, não pensou no que os outros iriam dizer. Se seria bom para a sua
imagem. E mais, não teve medo. Apenas seguiu seu coração. Novamente seus dedos
dedilharam o teclado e novamente Felipe ouviu os acordes iniciais do dueto.
─ Ela sabe o jeito de agradar/ Um sorriso brincando no
olhar/ Me fascina com seu jeito de ser/ Ela é tudo enfim que eu preciso ter. –
Foi difícil controlar a emoção quando recomeçou a cantar, ficou ainda mais
emocionado escutando a doce voz de Milena que o seguiu.
─ Ele passa e o tempo faz parar/ Quando fala é música no
ar/ Me conquista, querendo não querer/ Ele é tudo, enfim, que eu preciso ter. – Mile, fechou os olhos e cantou sentindo os olhos de
Felipe em cima dela. Ele não a olhava com desejo, olhava com admiração. E essa
foi uma sensação totalmente nova. Uma sensação com a qual a patricinha da
escola ainda não sabia lidar.
─ Quando bater na porta deixa entrar/ Pra te ganhar de
norte a sul/ No mundo da lua, tudo vai ficar/ Descobrir que o amor é azul. –
Felipe cantou a segunda parte com mais vontade ainda, confiante de que ela o
acompanharia até o final. Sentia coisas esquisitas, arrepios que começavam no
pé da barriga e percorriam o corpo todo. Nem ligava, poderia morrer ali,
morreria feliz.
Mile não sabia bem ao certo o que
pensar. Sabia que a voz de Felipe completava a sua como duas partes de um mesmo
todo. Sabia também que tinha gostado de ele ter vindo sentar ao lado dela, de
sentir o cheiro bom de sua colônia e o calor da sua pele. Mas já não sabia mais
se aquele garoto era tão insuportável quanto ela gostaria que ele fosse.
Cantaram numa só voz o trecho seguinte
da canção, olhavam-se nos olhos com admiração mútua.
Milena não continuou a música, nem mais
lembrava as notas de tão confusa. Lipe permaneceu sentado ao lado dela de olhos
fechados, não queria que o momento passasse, estava ainda tocado pelo timbre da
voz de Mile. Já Milena olhava absorta para Felipe como se o estivesse vendo
pela primeira vez. Não conseguia mais ver o campeão da natação, o cara
inconveniente do ano passado com suas cantadas baratas, o rapaz metido a
gostoso que pegava todas as menininhas fáceis do colégio. Pela primeira vez,
ela podia enxergar um cara bacana.
─ Troy e Gabriella[1],
ainda bem que achei vocês. Faz um tempão que eu procuro os dois. – Mariana, sem
nenhuma sutileza, acabou com o clima.
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