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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

RELICÁRIO




           II

Podia pensar mil motivos para que ela não o quisesse. Ele não era bonito. Ele não tinha dinheiro. Não chegava nem a ser interessante, exótico ou controverso. Mário era um cara normal. Desses que passam por invisível se não fizerem algum barulho. Mas era com ele que Alice estava naquela noite quente de verão.
Ele fora um bebê pacato de poucos sorrisos, uma criança observadora de muitos olhares e sem jeito para brincadeiras, um adolescente curioso, porém, medroso. Agora era um jovem de muitos interesses, o maior deles, ganhar dinheiro. Queria demais ser alguém na vida. Embora não soubesse ainda o que isso significava.
            Mexia com computadores. Isso, no início dos anos noventa, era um universo de grandes oportunidades que se abria a sua frente. Ele imaginava novos mundos. Inúmeros recursos. Estudava linguagem de programação com afinco. E consertava máquinas quebradas nos finais de semana para sustentar seu vício em quadrinhos. Desmontava e montava computadores numa relação cada vez maior de simbiose. Não precisava de mais ninguém. Ele controlara as variáveis do programa de sua vida. Iria montar um negócio no ramo da informática, ficar rico, e, finalmente, iria saber o que significava ser alguém.
            Mário tendia a ser ingênuo. Nunca compreendeu bem como funcionavam as relações humanas. Até tinha algum medo delas. Fugia. Por isso, percebeu tarde demais que é impossível programar a vida.
            Naquela manhã, atendera ao chamado de um cara bacana da faculdade. Bacana pela personalidade e pela grana. Estudava para ser médico. Usava roupas caras. Dirigia um jipe velho, mas por opção. Com certeza, aquele rapaz tinha um ou até mais esportivos na garagem. Chamava-se Adriano.
            A casa de Adriano poderia facilmente ser classificada como uma mansão. O tipo de construção que Mário só vira nos cinemas. Nem por isso, o rapaz deixava de ser simpático. Conversou sobre futebol, ofereceu bolo, falou de algumas meninas da faculdade. Nenhum assunto interessava de fato. Não gostava de futebol. Não comia bolo. Nem saía com garotas. Mário queria resolver o problema e cair fora dali, trancar-se no seu universo particular o quanto antes, planejar seu futuro perfeito. Mas Adriano continuava a falar como se fossem conhecidos de longa data.
Um amigo em comum os apresentara, disse que Mário consertava computadores e Adriano estava com uma máquina quebrada há meses. Combinaram a visita e o preço. Ele cobrou um pouco mais, o rapaz nem pestanejou em pagar. Mário estava habituado ao silêncio. Adriano falava pelos cotovelos.
Terminou o mais rápido que pôde. Máquina funcionando. Adriano ofereceu carona. Mário recusou sem jeito. Mentiu que ia para um shopping perto. Dava para ir a pé. Adriano não insistiu, não pretendia enfrentar um trânsito de shopping no sábado à tarde, acompanhou o rapaz até a saída. Foi uma longa caminhada.
No percurso até a parada de ônibus, ficou pensando nisso. Um dia, teria uma casa tão grande como aquela, uma casa que precisaria de carro para chegar à saída. Tinha algumas boas ideias na cabeça, logo iria realizá-las. Daria tudo certo.
Ia tão distraído que tomou um grande susto com um carro cantando pneus. Um playboy desagradável subia a rua mostrando a potência do carro novo que seu pai lhe dera. No meio da rampa íngreme, uma moça, com a mão na cintura, acompanhava com os olhos indignada o percurso do automóvel.
Seus grandes olhos verde-água, sua barriga lisa por debaixo da blusinha curta, suas pernas torneadas muito brancas descobertas pela saia jeans, qualquer característica da moça poderia ter sido a primeira coisa a chamar a atenção de Mário. Entretanto, foi o fato de ela ter usado palavrões em pelo menos quatro idiomas diferentes e alguns em português que ele sequer sabia que existiam que acabou prendendo seu olhar.
─ Que foi? Nunca viu? – Virou-se para ele quando percebeu que não conseguira dar um passo desde que a vira. Mário baixou a cabeça. Mas teve a incomum presença de espírito de dizer:
─ Xingando em Grego Koiné? Não. Nunca tinha visto. – Ele ia seguir seu caminho. Ela abriu um sorriso ainda parada lá no meio da rua. Era mesmo curioso xingar em grego antigo. Caiu na risada de maneira tão espontânea que o desarmou, ele riu também.
─ Prazer. Eu me chamo Alice. – Veio apresentar-se oferecendo a mão para o cumprimento. – Estudo Letras Clássicas na Federal. Isso explica o meu Grego Koiné. E o seu?
─ Eu me chamo Mário. – Encarou os olhos verdes dela pela primeira vez, quase nem teve forças para sustentar o olhar. Eram olhos extremamente sinceros. – Meu avô era filósofo. E chato. – Fez questão de acrescentar o chato, sem isso, não seria o avô. – Passava as minhas férias de julho traduzindo textos tão velhos quanto ele. Em Grego Koiné.
─ Seu avô deve ser o máximo! – A essa altura, ela já descia a rua junto com ele rumo à parada de ônibus. – Deve ter te contado todas aquelas histórias mitológicas, explicado cada mito... Imagina que viagem... – Alice tinha um jeito empolgado de usar as mãos com gestos largos. Ele, pelo contrário, matinha as mãos no bolso.
­­─ Nunca gostei de mitos... – Disse balançando a cabeça com desprezo. Ela parou a caminhada na mesma hora. Ouvira a heresia das heresias. Como alguém poderia não gostar de mitos? Ela amava mitos. Ficou de frente para encará-lo, estava boquiaberta.
─ Você não existe. É alma de outro mundo. – Pegava nos braços dele como se de fato desconfiasse que ele não estivesse ali. – Impossível não gostar de mitos.
─ Eu não gosto de invencionices. Gosto de números. – Estava ficando tímido. Nunca tinha conversado tanto tempo com uma garota tão bonita.
─ Mentira!  - De repente, ela gritou. Apontava para a cara dele. – Você tem a maior cara de que adora quadrinhos. Vamos! Confessa! Batman ou Homem-aranha? – Fazia cócegas nele com a maior intimidade, como se se conhecessem há séculos.
­─ Eu me rendo. – Tirou as mãos do bolso para afastá-la e parar com o ataque. – Gosto de quadrinhos sim. – Sorriu. Chegaram na parada. – Mas quadrinhos são quadrinhos, fantasia pura. Não são como os mitos que tentam explicar de uma forma esdrúxula uma realidade que a ciência não compreendeu.
­─ Deixa ver se eu entendi... – ela sorria com um dedo na boca. Era um sorriso encantador, tanto que o ônibus dele passou, mas ele nem fez menção de dar sinal. Iria depois que ela fosse. – Você é daqueles homens que acreditam que há apenas uma explicação para tudo. É isso? – Gostou demais de Alice ter se referido a ele como homem.
─ E existe mais de uma explicação? – Desafiou. Mário viu a personalidade inquisidora de Alice formular pelo menos uns quatro ou cinco argumentos por detrás daqueles olhos tão verdes.
─ E a fé, por exemplo, não te diz nada? E o inexplicável? E o incompreensível? E a arte? – Ela sorria e girava com seu cabelo claro ao vento. – O mundo é tão maior que a ciência, Mário.
─ Pode ser... – Levantou os ombros tentando não contrariá-la tanto. Ela girando era bonita demais, não queria que parasse. – Mas a ciência é a medida de todas as coisas. Ela é a única realidade que o ser-humano pode confiar. A realidade para além dos sentidos. A realidade confirmada no laboratório.
─ Não acho. – Começava a escurecer. Fazia uma cara feia para as palavras dele.  – Coisa mais sem graça, confiar sem sentir. Quero justamente o contrário, quero sentir para confiar. Acho mesmo que o amor é a medida de todas as coisas.
─ Temos uma romântica aqui então. – Sorriu.
─ Das mais incorrigíveis... – Retribuiu o sorriso, partilhando um olhar de muitos significados. – Só sei viver completamente apaixonada. – Eram opostos, ele fugia da paixão.
─ O idiota que te largou no meio da rua era a paixão do dia? – Criou coragem para perguntar.
─ Como diz Renato Russo “me apaixono todo dia/ é sempre a pessoa errada”... – Cantava e continuava a sorrir. Talvez, não perdesse o bom-humor nunca. Alice nem parecia pertencer ao mesmo planeta que ele. Era como se não pisasse no chão. Etérea. – E você, o que acha do amor, Senhor Mário?
─ Acho uma grande perda de tempo e de dinheiro. Assim como a fé. – Respondeu sem hesitar.
─ Jura? – Arregalou os olhos incrédula. – Não acredito. Quer dizer que você, hoje, plena noite de sábado, vai para casa? Não vai se encontrar com uma namoradinha gostosinha e cheirosinha só para não gastar seu precioso tempo e seu rico dinheirinho?
─ Melhor do que passar a noite de sábado amargando um grandessíssimo pé-na-bunda de um otário qualquer.
─ Ponto para você pelo argumento. Mas eu não me arrependo nem um pouquinho assim. – Fez o gesto com os dedos. – O otário até que é bonitinho. – Sorriu. – Beija muito também. – Outro sorriso. Mário não estava gostando desses sorrisos. – E é lindo!
─ Mas te deixou no meio da rua...
─ Na verdade, eu que quis descer. O Artur é muito cheio de vontades. E tem coisas, Mário, que eu só faço se eu quiser. Também tenho minhas vontades. – Frisou bem o eu.
─ Tipo? – Estava curioso. Nunca conhecera ninguém que mexesse tanto com ele. Que o instigasse. Precisava continuar conversando com ela.
─ Sexo, por exemplo. – Ele ficou vermelho. Não imaginava que falassem sobre isso, ainda era ingênuo. Ela percebeu o constrangimento. – Ou coisas mais simples, como puxar conversa com um total desconhecido no meio da rua – Sorriu. Ele sorriu de volta novamente, não conseguia parar de sorrir. – Convidar esse desconhecido para ir ao shopping comer alguma coisa já que faz tempo que os ônibus passam e nenhum de nós tem coragem de dar sinal.
─ E se o desconhecido não aceitar?
 ─ Então, eu pretendo tentar convencê-lo dizendo que pago o lanche. O que minimiza o desperdício que vai ser só de tempo, não de dinheiro... – Ela foi puxando o braço dele em direção ao shopping.
─ Você pretende tentar convencê-lo que o amor não é perda de tempo também? – Não sabia de onde aquelas palavras estavam vindo. Não conseguia mais se reconhecer. Que poder era esse que ela exercia sobre ele?
─ Não. – Balançou a cabeça com força. – O amor não precisa de argumentos. Ele é mais forte que tudo. Só precisa do tempo certo para agir.
Anos depois, Mário entendeu exatamente o que Alice falou no dia em que se conheceram. O software milionário que ele desenvolveu chamava-se Dédalo em homenagem ao mito do labirinto. Todas as noites, rezava para que ela estivesse bem. Descobriu que cada fenômeno pode ter centenas de explicações. E que o amor era de fato a única medida que interessava para todas as coisas.

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