Alice nunca temeu um resultado. Estava
ciente das consequências de cada escolha que fizera na vida. Mas ali, sentada
em seu banheiro, diante do exame mais importante de todos, um resultado a
assustava como nunca antes algo fora capaz de fazê-lo. Naqueles minutos de
solidão, um filme bem particular, que tinha ela mesma como protagonista,
passava na sua frente.
Ela não tivera os pais mais fáceis do
mundo. Foi o medo que os ensinou a amar. E o medo não é um bom professor para
uma lição dessas. Alice era filha única. Quando criança, tivera uma doença
grave. Os médicos disseram que não resistiria, mas o organismo respondeu e
ninguém ainda sabe como. Crescer fora um milagre inexplicável. Sua presença era
a memória viva de um presente de Deus. E isso deu origem a um amor tão grande
que sufocava. Que preenchia todos os espaços. Que não conhecia nenhum limite.
Nem mesmo os dela.
Diferente dos pais, que viviam a se
prevenir da morte numa mistura de fé, medo e cuidados, Alice tinha uma vontade
extrema de conhecer a vida. Ela zombava da cara do medo e seu único cuidado era
aproveitar o tempo. Sentia como se houvesse recebido uma segunda chance.
Perder-se do objetivo de viver somente do que lhe agradasse era um desperdício do
qual não conseguiria se perdoar jamais. Este era o seu testemunho de fé: viver
com saúde.
Por isso, apesar da insistência dos
pais, queria se formar, queria ser professora, queria ler todos os livros do
passado, queria se apaixonar, queria ir ao cinema, queria namorar até tarde e
depois dançar na chuva. Queria o tudo com extrema paixão. Aliás, Alice só sabia
fazer alguma coisa com paixão. Passeava por todos os cantos com uma felicidade
incomparável, ela era apaixonada pela existência nesse mundo. Estava viva. A
maioria das pessoas não conseguia compreender o quanto isso era maravilhoso.
Ela conseguia.
Sem se dar conta de como, apaixonou-se por
Artur, companheiro de infância. E aquilo foi tão bom quanto à notícia da cura.
De repente, cada sorriso era mágico. Cada toque tinha centenas de significados.
E o beijo, quando aconteceu, a levou para um outro mundo totalmente desconhecido.
Artur era lindo. Dentes de uma brancura angelical que se encaixavam no sorriso
perfeito. E ela perdeu a conta de quantas vezes viu estrelas refletidas nos
olhos do amigo.
Mas aquilo ali não era amor.
Não o tipo de amor que une duas pessoas
num emaranhado de significados inexplicáveis.
Até aquele momento, era jovem demais
para compreender o sentido do amor.
Até ali, foram apenas meninos e beijos e
sexo.
A vida era uma grande amiga de Alice. As
duas se conheciam muito bem, lutavam com todas as forças para permanecerem
juntas. A vida a estava ensinando mais uma vez o verdadeiro valor das coisas. O
resultado deu positivo. Alice estava grávida. Ela acabara de completar dezenove
anos.
Ela sentou no chão frio no banheiro com
aquele resultado na mão. Podia fingir que não acreditava nele, mas seria perda
de tempo. Ela não suportava perder tempo. Além disso, seu corpo já dizia tudo
que precisava saber: estava grávida.
Olhou para baixo e imaginou a barriga
crescendo, seu bebê mexendo dentro dela, a dor nas costas, a dificuldade para encontrar
posição para dormir, os seios tão inchados de leite que nem caberiam mais nos
seus sutiãs. Sentiu a dor do parto e a alegria de conhecer o menino que se
chamaria Pedro. Pedra definitiva. Uma certeza. A única decisão a ser tomada.
Uma decisão da vida.
As lágrimas rolavam pelo seu rosto, eram
lágrimas de felicidade. Ela, que não podia estar viva, seria mãe. Zombou da
cara do medo mais uma vez, não porque tivesse muita coragem, mas porque não
sabia sentir mais nada além de amor. Não pensou na sua velha e conhecida doença,
não pensou na cabeça retrógrada dos pais, não pensou nas circunstâncias na qual
aquela criança fora gerada, não pensou no dia após dia daquela sua barriga
crescendo. Ela pensou em Pedro.
E Pedro foi o seu primeiro grande amor. E
um amor desses não precisa de palavras. O menino (ela sabia que seria um menino
com a mesma certeza com a qual sabia que recebera do divino uma breve segunda
chance) era um presente da vida, sua melhor amiga.
Depois, claro, pensou em Mário e seus
olhos confusos. Pensou naquela noite, um mês e meio antes do resultado. Os dois
se entregaram de uma forma que ela não imaginava que ele fosse capaz. Mário,
assim como a vida, tinha seus mistérios, Alice se lembrava de ter pensado nisso
enquanto cochilava deitada no abraço dele.
O rapaz tímido que a encantara com suas
palavras tão precisas, sua lógica determinista e suas ambições sem nenhum sentido
fora um amante surpreendente. Ele não tirou os seus olhos dos olhos dela
durante toda a noite. E não fora estrelas que ela vira naqueles olhos, fora
admiração verdadeira. Mário era de verdade.
Alice o levara a festa como amigo. Ela o
apresentara a todos. Mário não falou com ninguém, nem com Adriano que falava
com todo mundo. Estava acuado no canto, inofensivo, talvez mendigando a atenção
dela, seguindo-a com o olhar. Por isso, não poderia prever que a festa na casa
de praia dos seus pais terminaria com um murro na cara de Artur. Foi um
alvoroço. Os amigos chocados com o comportamento do estranho.
Poderiam ter desconfiado do fato de
Adriano não ter defendido o irmão. Mário poderia ter se defendido das
acusações. Mas as pessoas não fizeram isso, elas apenas socorreram o simpático
e rico Artur Leal, enquanto lançavam olhares acusadores para Mário.
Alice foi encontrá-lo sentado na beira
do mar tantas horas depois. A casa estava vazia. As pessoas tinham ido embora. A
essas alturas, ela já sabia os motivos de Mário. Ela conhecia bem as grosserias
de Artur, principalmente quando bebia demais, principalmente quando se sentia
ameaçado. Mário era uma ameaça para Artur. Uma ameaça a perder a posse de
Alice. Pelo menos, foi assim que o amigo enxergara. Ela era louca por Artur e
ele sempre soubera disso. Artur brincava com seus sentimentos. Tinha medo de se
envolver com a amiga com quem brincou e por quem chorou tantas vezes.
Nunca antes aquilo a incomodou. Estava
mais do que acostumada com um amor que não sabe amar sem medo. Naquele dia,
entretanto, parecia que Artur não lhe servia mais, que a estava apertando, que
prendia até sua circulação sanguínea. Mário e a imensidão do mar a atraíam.
Sentou-se ao lado dele. No mínimo, devia algo àquele rapaz. Ainda que fosse
apenas uma satisfação.
Não disseram nada. Em algum momento,
Mário, o tímido, o acuado, apenas a puxou pelo pescoço e a beijou. Não foi tão
bom quanto o beijo de Artur. Nem foi tão fácil compreender aquele coração
quanto o do amigo de infância, mas foi real. O sentimento de Mário era tão
material quanto ele mesmo. Mário não tinha dúvidas ou restrições. Ele estava se
entregando a ela sem medo. Aquilo a encantou.
O beijo terminou na cama.
A cama começou uma nova história: a
história de Pedro.
***