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terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

RELICÁRIO




Na primeira vez que Edgar pôs os olhos em cima de Heloísa nada aconteceu. Exatamente isso: nada. Ninguém respirou. Ninguém piscou. A gravidade esqueceu o que era massa vezes aceleração e até o spin dos átomos deu um tempinho na rotação. O mundo. Ou, pelo menos, o mundo de Edgar deixou de funcionar por dez segundos.
Nesses dez segundos, como alguém que está à beira da morte, ele viu sua vida passar junto daquela moça de cabelo curtinho. Não o passado. O futuro que ele queria construir com ela. O casamento. A casa. A família. Do primeiro beijo às Bodas de Ouro. E ele soube que nada valeria mais do que conquistá-la. Difícil seria conquistá-la.
Edgar era um estudante de Medicina que veio de uma escola pública. Sua conquista foi tão grande que saiu até no jornal. Ele estudou dia e noite, revisando os conteúdos pela madrugada. Passava os domingos estudando Física e Matemática, as matérias que tinha mais dificuldade. Estudava nem que fosse trancado no banheiro para fugir da gritaria.
Não que sua família fosse paupérrima ou desequilibrada. Simplesmente, com três irmãos além dele para criar com salários de costureiros, os pais não tinham condição de arcar com esse tipo de despesa. E, desde cedo, Edgar tomou consciência que seus sonhos deveriam ser do tamanho do seu esforço.
Heloísa era o oposto. Era amiga de infância de Adriano. Adriano, seu melhor amigo da faculdade de Medicina, pertencia a uma das famílias mais ricas da cidade. Seu pai, Demóstenes Leal, era um advogado de sucesso. A casa de Adriano deixava Edgar tonto. Não imaginava que pessoas pudessem ter tantas regalias. Até mordomo eles tinham. Colecionavam carros. Carros. Sua família não tinha um carro ainda, mas eles tinham pelo menos dois para cada membro.
Enquanto Edgar assustava-se com tudo naquela propriedade, Heloísa parecia muito à vontade. Ela e a mãe de Adriano conversavam com cumplicidade tomando chá com biscoitos. Edgar achava que aquilo só acontecia em filmes, mas a cena se repetia bem diante do seu nariz. A moça falava baixo e dava mordidinhas minúsculas nos biscoitos amanteigados.
Ele reparou nos dedos finos e delicados de unhas bem cuidadas, tão diferentes das suas mãos de pele grossa de tanto ajudar na lida da casa. Reparou no corte do cabelo na altura das orelhas. Era um corte tão bem feito que ele imaginava que cada fio ficaria no lugar mesmo no meio de um vendaval. E reparou na sandália. Aquela sandália que ela usava, com pedrinhas brilhantes, era de uma grife exclusiva. Aquela sandália deveria ter custado mais que o ordenado de sua mãe. Lembrou-se que os sonhos deveriam ser do tamanho do esforço. Aquele sonho de menina não cabia na força dos seus braços de menino batalhador.
Subiu as escadas sem vontade, com a cabeça baixa e o mundo nos ombros. Adriano, que o acompanhara até a cozinha para um lanche, estranhou a demora. Ainda tinham muito para estudar, Edgar não dispensava estudo. Era o melhor aluno de sua turma. Voltando pelo mesmo caminho. Entendeu na hora o que havia acontecido e com um sorriso no rosto insistiu em apresentar o amigo para Heloísa. Edgar preferia morrer a enfrentar o olhar bem maquiado daquela menina linda com sua calça jeans sem marca, mas Adriano simplesmente o puxava escada abaixo. Logo estava de frente para ela.
Edgar parecia ser feito da mesma manteiga dos biscoitos na mesinha de chá, pois sentia que derretia diante do sorriso contido de Heloísa. Ela não precisou fazer nenhuma cara feia, ou torcer o nariz, ou desprezá-lo com o olhar. Estar diante um do outro foi o suficiente para que ele entendesse seu lugar. Heloísa pertencia a outro mundo, um mundo paralelo ao seu. Um mundo que, provavelmente, ele passaria a vida inteira tentando integrar sem sucesso. E, mesmo assim, não conseguiria ser uma daquelas pessoas. Não conseguiria ser como Adriano na sua gentileza natural de gestos.
Voltaram para o quarto, mas Edgar não era mais o mesmo. Perdia-se fácil em pensamentos e quando Adriano fez uma pergunta estúpida de anatomia e ele não soube responder, ambos compreenderam que a tarde de estudo estava perdida. Edgar desabafou suas angústias. Tinha tanto orgulho da sua família simples, porém, nunca se sentira tão insignificante quanto olhando para os pés daquela menina. A sandália de grife parecia esmagá-lo.
Foi então que Adriano mostrou pela primeira vez a pessoa que era. Naquela tarde, deixaram de ser colegas de faculdade e tornaram-se amigos, irmãos. Adriano disse com todas as palavras o quanto Edgar estava perdendo tempo julgando as pessoas pelo que elas usam, pelo que elas têm. Afirmou que Heloísa, debaixo da roupa de grife, era uma das garotas mais bacanas que ele já conhecera, que tinha uma alma simples e que se ele, Edgar, não tinha forças para lutar por ela, era porque não a merecia. Mas que não achava nada justo ficar arranjando desculpas por conta de dinheiro.
Adriano contou também que o pai nascera filho de mecânicos. E que tudo que ele conquistou foi com muito esforço e muito estudo. Naquela casa, o esforço valia muito mais do que a aparência. A mãe de Adriano, agora sentada na sala tomando chá, em outros tempos, lavou roupa para fora. Realmente, ela não tinha os dedos delicados de Heloísa. E, de fato, Edgar foi muito bem recebido na casa dos Leal ao contrário do que esperava. Doutor Demóstenes fazia muito gosto daquela amizade. Agora ele era capaz de entender, o pai do amigo reconhecia nele os seus próprios méritos.
Foi muito por causa dessa conversa que, na manhã seguinte, quando Adriano o convidou para ir jogar futebol na praia, ele aceitou. Mesmo sabendo que Heloísa e sua melhor amiga Alice também iriam. A praia era um lugar democrático. Jogando futebol de bermuda na areia, não dava para saber quem era de família rica e quem era da ralé.
Estava decidido. Não ia desistir do futuro que sonhara. Já chegara até ali. Os sonhos são do tamanho do seu esforço. Ele estava disposto a se esforçar. Fez uma promessa a si mesmo, se conseguisse, se aquela menina linda fosse sua, tudo, absolutamente tudo, seria razão para celebrar. E a festa começou pelos olhos, celebrou consigo cada curva que o biquíni de Heloísa deixou a mostra. Perdeu um lance de gol, mas não estava nem aí. Seu futuro esticava-se na areia, um futuro lindo em todos os seus detalhes, em breve, seria um futuro banhado de sol. Adriano deu um tapa na sua nuca o fazendo voltar para o presente.
Voltou para o jogo. Não era muito bom, mas, boa parte daqueles caras, jamais tinha jogado no meio da rua, então, ele levava vantagem na malandragem. Divertiu-se. Sua equipe ganhou. Depois, um banho no chuveiro da barraca e, finalmente, conversar com as meninas. Ele puxou assunto. Podia ser o cara pobre, não precisava ser o cara tímido e chato.
─ E aí, Heloísa, você faz faculdade?
Ela demorou a responder. Edgar não tinha notado, mas ela estava com um pedaço enorme de sanduíche natural na boca. Um pedaço nada parecido com as mordidinhas delicadas no biscoito amanteigado. Quando perguntou, ela quase se engasga. Ficou abanando as mãos na cara, tentando mastigar depressa. Ele achou muita graça daquilo. Alice ofereceu um gole de refrigerante com um olhar de censura, pelo jeito, Heloísa fazia isso sempre. A outra moça voltou a ler como se nem pertencesse ao mesmo mundo que eles.
─ Eu estudo Física na Federal... – Sua voz saiu fina quando finalmente disse.
─ Física? Tipo: Mecânica, Termodinâmica, Eletricidade... – A surpresa foi tão grande que ele nem conseguiu controlar o tom de voz.
─ Essa mesma. – Pelo jeito que ela respondeu, não gostou nem um pouquinho do tom dele.
─ Desculpa. – Abaixou o rosto com vergonha. – Sempre te fazem essa pergunta, não é? – Ela fez que sim com a cabeça e uma careta azeda. – Devem perguntar também se você faz Educação Física, não é? – Ela continuou confirmando com a cabeça. – Foi mal. Sabe o que é? – A coragem vinha não se sabe de onde. – É que com esse corpo lindo desse jeito é natural a gente pensar que você faz Educação Física.
Heloísa ficou vermelha na mesma hora. Adriano, que estava do outro lado da cena fingindo contemplar o mar, olhou para ele surpreso com a coragem. E até Alice levantou os olhos da leitura. Edgar não se intimidou. Continuou a falar.
─ Nossa! Com todo respeito, Heloísa, nunca conheci uma garota tão bonita que fizesse Física. Caraca! Você deve ser muito inteligente também. – Ela não respondeu, ainda estava chocada. – Essa combinação é muito perigosa, sabia? Desse jeito eu me apaixono.
─ Ela foi convidada a cursar algumas disciplinas do mestrado ainda na graduação. – Alice respondeu sem deixar de ler. – Isso não é uma mulher, meu filho, isso é Newton travestido.
Todos riram e a conversa engrenou. Os quatro falavam, o tempo passava depressa, mas Edgar deixou bem claro que estava a fim de Heloísa. Tanto que perguntou se podia levá-la para casa e ela aceitou. Adriano e Alice foram de carro e os dois pegaram um ônibus. Ele pagou as passagens, ela comprou dois picolés desses de praia com gosto de sal por ser feito com água de torneira. Edgar estava fascinado, apesar da pose de patricinha, Heloísa era muito simples. Cantava todas as músicas da trilha sonora da viagem de ônibus.
─ Olha, para uma moça educada de sociedade, você até que é pé no chão... – Ele sorria enquanto ela se sacudia no balanço de um funk. Vagaram dois lugares, eles sentaram juntos.
─ Ah! Eu sou do povo, menino! – Sorriu e encostou a cabeça no ombro dele. Edgar estremeceu. Concluía que aquilo ali era se apaixonar, pois nunca sentirá nada parecido antes. – Esse negócio de sociedade é um saco às vezes. – Ela desabafou. – Adoro o Artur e o Adriano, sabe? Mas a mãe deles... – Fez um gesto colocando o dedo na garganta mostrando o quanto a mulher a desagradava. – Pense numa mulher chata. Preocupada com a vida dos outros e com as regras da sociedade. – Balançava a cabeça chateada. – Não posso nem falar nada, minha mãe é do mesmo jeito. – Edgar não conseguia parar de olhar para ela. Que criatura espetacular. Linda. Inteligente. Ele precisava passar o resto da vida do lado dela. – Eu não sou assim, não, sabe, Edgar? Eu não acho que as pessoas são aquilo que elas têm. O universo é tão maior que isso. Tão maior.
─ Heloísa, sem querer te interromper, mas eu não estou mais aguentando... Posso te dar um beijo?
─ Eu pensei que você não fosse mais pedir.
Foi o primeiro beijo deles. O primeiro de muitos. Não como Edgar tinha imaginado. Muito. Muito melhor.

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