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segunda-feira, 30 de maio de 2016

Cultura de Estupro

No carnaval de 1999, quando eu tinha 17 anos, uns amigos de escola estavam sem lugar para ir no carnaval e eu sempre ia com minha família para Morro Branco. Na época, era o point do carnaval aqui do Ceará. De última hora, esses dois amigos foram lá para casa comigo. 

Meus amigos encontraram outros amigos que alugaram uma casa. Eu conhecia várias pessoas daquele grupo, uns bem, outros nem tanto. E, na hora da festa, estávamos todos juntos. Aquele clima de paquera natural da faixa etária, aquele grupo grande de adolescente testando limites e a loucura do carnaval. 

Particularmente, eu sempre tive noção de limites. Dos meus próprios limites. Eu sempre me respeitei muito. E nunca trilhei caminhos que me causassem medo, uma luz de alerta sempre acendeu na minha cabeça e eu simplesmente não ia pela cabeça dos outros. Em outras palavras, eu sou careta pra caralho. Não bebo, não fumo, não uso entorpecentes de nenhuma natureza, não saio por aí abrindo as pernas para qualquer um com sorriso bonito e mente podre, tampouco esqueço o que fiz na balada. Comigo é de cara limpa. Nem por isso sou santa, viu?

Entretanto, quero deixar claro que respeito qualquer um/uma que o faça. Apesar de perigoso, deve até ser divertido de vez em quando... Compreendo os benefícios de uma pequena fuga da realidade.

Voltando ao carnaval de 1999, dentro desse grupo de amigos e colegas, havia uma garota que eu conhecia da escola. Ela era da pá virada. Muito álcool. Muito beijo na boca. Muita adrenalina. Tatuagem do quadril à virilha. Uma rosa cheia de espinhos que ela fazia questão de mostrar através de suas roupas. Acho que ela passou o carnaval embriagada. Eu, pelo menos, só a vi assim. Na piscina, na praia, na praça. Sempre com a boca em alguém. Rindo e provocando.

Eu realmente não gostava dessa garota. Nós não tínhamos a mesma forma de pensar. E ela colocava a minha atitude em perspectiva. Para os outros, talvez, eu parecesse uma boboca com hora para voltar para casa, enquanto ela era independente e se divertia como garota descolada que era. Mas, do meu ponto de vista, ela estava exagerando. Ela era fácil. Se é que vocês me entendem...

Afinal, eu era para casar. Ainda sou.

Bom, em uma das noites, essa moça estava muito alcoolizada. Provavelmente, ela usara outras coisas também. Lembro que o pensamento que tive olhando para ela cambaleando para lá e para cá, os olhos totalmente sem vida, foi a de uma catraca do Paranjana. As pessoas passavam e mexiam com ela, os homens a puxavam, tocavam nela sem menor respeito. Ela sorria. Ela gargalhava. Depois, caía no chão e ficava lá.

Era constrangedor, mas era também ela sendo ela.

De repente, um cara começa a beijá-la. Naquele estado. Não sei realmente dizer se ela queria ou não, se sabia o que estava fazendo ou não, pois os trejeitos de sedução continuavam, apesar da visível perda dos sentidos. Esse cara começou a puxá-la para o meio da multidão.

Acredito eu que, naquelas condições, longe do grupo, aconteceria com essa garota exatamente o que aconteceu com a menina no Rio. Bem, eu estava lá, sóbria. Ciente do que eu estava vendo. Eu não fiz nada. Simplesmente não achei que devesse fazer. Vocês acreditam? Eu achei que cada uma deveria saber de si... Achei que ela era aquilo ali mesmo. Que estava buscando uma coisa assim.

Uma garota de dezessete anos como eu. Da minha escola.

Felizmente, um homem, um amigo dela, igualmente bêbado, igualmente entorpecido, puxou-a. O cara ainda quis fazer alguma coisa, mas quando viu o tamanho do grupo, desistiu. A garota mesmo, continuava apática.

Esse rapaz, sempre achei que ele tivesse o coração bom, ficou cuidando da amiga o restante da noite. Abriu mão da sua noite de festa para cuidar da bêbada. Até onde sei, voltaram todos bem para a casa.

Moral da história: Julgar é fácil, fazer alguma coisa a respeito é bem mais difícil.

Sou feminista. Sou mesmo. Mas, como todo mundo, estou também impregnada por valores. Hoje, penso diferente, é claro. Porém, naquele dia, eu não teria, como não tive, a menor reação diante da atitude do rapaz, porque na minha cabeça, ela estava procurando aquilo. Ela era esse TIPO de moça.

Pessoas, não quero relativizar o crime do Rio. Em pleno século XXI, qualquer justificativa que atribua a causa de um absurdo desses à vítima é hediondo. Achar que esses caras são monstros também, a meu ver, não define e nem ajuda a resolver. Eles simplesmente pensaram que ela era esse TIPO de moça.

Nós precisamos é entender de uma vez que não existe esse TIPO de moça. Ninguém deve ser violentado. De forma nenhuma, em momento nenhum, por nenhum motivo.

Tenho visto na internet, um discurso de ódio (cada dia mais comum esse discurso, sobre qualquer assunto). Coloca-se a culpa no HOMEM. Quem dera fosse assim. Apontar o dedo para o culpado e resolver o problema. As mulheres se poem no lugar da vítima, porque sofrem assédio. Até aí tudo bem. A questão é que nós também fazemos parte desse jogo cultural, alimentando com valores esses comportamentos. Afinal: quem tiver suas cabras que tome conta, porque meu bode está solto.

Nós criamos esses homens. Nós supervalorizamos a força. Nós os ensinamos a serem machos, para além de serem humanos. E ser macho é se contrapor a outro macho, é ser melhor. E para ser melhor, não existe espaço para ver o outro como um igual, nem a um amigo, quanto mais uma fêmea, que é meramente um objeto a ser disputado. Bestial assim.

Homem não chora. Homem não cozinha. Homem não abraça outro homem. Homem não usa rosa. Homem não tem frescura. Homem que é homem não dança, não rebola. Homem tem pegada. Homem não dispensa. Homem tem que ter atitude. Homem...

Dentre tantas obrigações e a empatia, cadê?
Não vamos nos eximir dessa responsabilidade. Não são os homens que estão ensinando as novas gerações. Pelo menos, não exclusivamente. Claro que a sociedade interfere, mas, como família, precisamos mudar certos valores. URGENTEMENTE.

Nós temos que empoderar as mulheres para lidar com esse mundo cheio de preconceito. SIM. Mas, sem sombra de dúvida, nós precisamos ensinar os meninos a sentir. A ver o outro como alguém. A ajudar. A se permitir errar, a se permitir fracassar, a se permitir falhar...

Precisamos criar pessoas para além de gêneros. E essa é uma tarefa de todos. Uma responsabilidade de todos. Da humanidade.

Nesse dia, homem que é homem dispensará sim. Porque ele também vai ser definido por algo a mais do que uma tentativa fácil de conseguir sexo. 

E mesmo que esse dia ainda esteja longe, imaginar um mundo com mais gente como o rapaz que perdeu sua noite para cuidar da amiga não parece tão impossível assim. Ou parece?

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