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sábado, 23 de março de 2013

RELICÁRIO


Certas coisas na vida são muito difíceis de escolher. Escolher ser soldado e lutar pelo seu país numa guerra que talvez nem lhe pertença, por exemplo, é uma escolha complicada. Uma escolha que envolve uma mudança significativa de atitude e de comportamento. Uma escolha que interfere na vida de todas as pessoas que amam a pessoa que fez essa escolha. Ainda assim, é uma escolha, diante de todas as consequências, diante de todos os desdobramentos possíveis é uma escolha. Portanto, deve ser respeitada. E a maioria vai enxergar essa escolha como um ato de heroísmo e coragem.
Porém, tem certas coisas na vida que não são uma escolha. Você acha que alguém escolhe de livre e espontânea vontade sofrer? Com certeza, podemos escolher lutar, podemos escolher abdicar, ou até mesmo morrer por algo. Mas, a simples opção pelo sofrimento soa um tanto estranha. Se é uma escolha, por que não escolher o caminho mais fácil? Quem escolhe ser diferente, se a diferença causa muito mais dor do que prazer? Sinta um pouco de empatia. Você escolheria ser feio? Você escolheria ser negro? Você escolheria ser gay? Eu acho que não.
Não escolhi ser nada disso. Bom, ao menos eu não sou feio, a herança boa de um passado podre.
Provavelmente agora você estaria me falando de Deus. Toda aquela história de que nenhuma folha caí de uma árvore sem que seja do conhecimento de Deus. Da maneira como Ele ama a todos como filhos. Deve amar mesmo. Contanto que você seja homem. Contato que você seja hétero. Contanto que você seja branco.
Veja bem, eu não tenho problema nenhum com o fato de que o seu Deus não me ame. Meu único problema é com você, que acredita nessas baboseiras religiosas, mas que na hora de pôr em prática, sai negando a todas elas antes do galo cantar três vezes como se fosse o tal do Pedro.
Raciocina comigo, apesar de eu duvidar da sua capacidade de usar a lógica. Primeiro, se é uma escolha minha, por que você não a respeita? Por que você não me deixa lutar minhas lutas? Por que você não admira a minha coragem? Só porque eu não estou lutando por um país sem rosto numa batalha que não é minha? Só porque eu estou lutando para ser eu mesmo? Por que isso incomoda tanto o seu programa de domingo? Aliás, quem é você então?
Vou te dizer: você é o inimigo.
Demorei tanto para entender isso. Eu me esforcei tanto para que fosse diferente. Não foi.
E tudo que eu queria era que por um momento você considerasse que nada disso foi escolha minha. Que esse é o meu único jeito de ser. E que se nenhuma folha de árvore cai sem o consentimento Dele, quem você acha que me fez? O demônio? O mal? Posso te garantir com qualquer argumento da lógica, com o silogismo mais idiota, que, se foi isso mesmo que aconteceu, esse seu Deus é um carinha sem poder e que até vale a pena não merecer o amor Dele.
Aliás, eu nunca quis o amor Dele, quis o seu.
Eu poderia gritar para o mundo ouvir que esse meu ódio é produto da civilização cristã ocidental, mas eu tô cagando para a civilização cristã ocidental. Meu problema é você, pai. Pai... Que palavra vazia. Dizem que Deus é pai. No meu caso, isso explica muita coisa.
Sei que nem adianta falar de amor contigo. Você não sabe o que isso significa. Eu vou falar mesmo assim. Vou falar pelo prazer de te atormentar com as minhas imagens. Com o meu corpo sobre o corpo de outro homem. Nossos beijos ardentes e mãos entrelaçadas. A forma suave como costumamos olhar as estrelas de madrugada e de como ele me abraça e me diz que vai ficar tudo bem. Ele afaga meus cabelos até que eu adormeço. Foi assim que eu conheci o que era ternura. Foi assim que descobri assustado que uma palma de mão também acaricia.
Você não me ensinou nada disso. Percebo que não poderia. Você não acredita em amor entre duas pessoas do mesmo sexo. Você não abraça um homem, não beija um homem. Isso é o que você chama de promiscuidade. Mesmo que eu seja seu único filho. Mesmo quando eu era apenas uma criança.
Luta contra a promiscuidade. A favor dos bons costumes. Moral e ética. Suas palavras de poder. Bastiões das suas campanhas.
Eu poderia lhe ensinar uma coisinha ou outra sobre elas. Quer um exemplo? Sim, eu faço sexo com outro homem, mas com o consentimento dele. Não exercemos um sobre o outro nenhuma espécie de violência física ou psicológica que nos obrigue ao ato sexual. Digo mais, ao final, nós nos viramos e falamos de amor. Amor. E o que temos é um tipo de compromisso. O compromisso leva à fidelidade. Outra palavra da qual o senhor nunca compreendeu o sentido. Mas, com toda ironia do mundo, o promíscuo aqui sou eu.
Infelizmente, não somos criaturas tão diferentes como você gostaria que fôssemos. Hoje, eu também gostaria que fôssemos de raças diferentes, de mundos diferentes, de universos paralelos. Mas não. Por dentro, meu sangue é tão vermelho quanto o seu. Sangue que meu coração impulsiona na mesma velocidade do seu coração. Carregamos o mesmo DNA.
Um dia, talvez eu tenha um filho que carregue esses mesmos olhos verdes. Espero que esse filho me ensine o significado da palavra pai. E que de alguma forma esta palavra se associe a outra palavra de maneira permanente: a palavra amor.
Para nós dois, tarde demais para isso. Esta carta é um adeus. Nunca mais vou olhar para trás. Imagino que esta seja uma dádiva para nós dois. Prisioneiro e carcereiro libertos da tarefa de conviver. Não sei quem entre nós exerceu que papel. Sei apenas que você cumpriu com as suas obrigações. Agradeço cada centavo investido na minha educação. Graças a ela, sou negro, sou gay, sou culto e tenho orgulho disso. Por mais incrível que pareça, também devo isso a você. Então, meu muito obrigado e até nunca mais.
Bernardo.

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