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quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

RELICÁRIO


Estava nervosa. Olhava o relógio de instante em instante para saber se estava atrasada. Não estava. Era sua primeira grande matéria. A primeira vez que escreveria por conta própria no jornal em que trabalhava desde o final do ano anterior. Entrara como estagiária de esportes cobrindo pequenas competições e, aos poucos, foi ganhando a confiança do editor-chefe. E agora aparecia essa oportunidade maravilhosa.
Fora mesmo uma sorte ter conseguido a entrevista. Tantos tentaram sem êxito. No próprio jornal, o colunista de Arte e Cultura tentara um milhão de vezes. Mas, pelo jeito, o passado falara mais alto. Para ela, bastara uma ligação para a pessoa certa. Joaquim.
Não se viam havia anos. Desde que ele viajara para estudar. Joaquim alcançou rapidamente uma carreira meteórica. Ainda estava na faculdade quando suas tirinhas começaram a fazer sucesso, primeiro no jornal local da sua cidadezinha nos Estados Unidos, depois no Times. Depois no mundo inteiro.
Agora ele tinha quadrinhos e livros com as suas melhores tiras, acabara de vender para o maior estúdio de Hollywood um segundo roteiro para a continuação do filme de sucesso baseado em sua obra e estrelado pela atriz queridinha dos adolescentes e viera ao Brasil exclusivamente para uma série de entrevistas de divulgação do primeiro longa, á totalmente estourado nas bilheterias. Era simplesmente inacreditável estar numa salinha de produtora chique esperando para conversar com um amigo de colégio desse porte.
O talento de Jota era inquestionável. Taís já sabia disso quando tinha quinze anos. Ele sempre tivera uma sensibilidade fora do comum. E uma percepção do mundo aguçada, capaz de uma empatia incrível. Não à toa seus quadrinhos eram sobre meninas. Meninas jogadoras de futebol. O quadrinho tinha o nome do time fictício que defendiam: Huntress. A Caçadora, em português.
No quadrinho, Joaquim descrevia o cotidiano de um grupo de meninas que lutava contra o preconceito para montar um time de futebol. E também sobre toda a dificuldade que as meninas encontram no dia a dia por conta do machismo de maneira geral. Taís se apaixonou por elas logo nas primeiras tiras que leu. Principalmente por Diana, a protagonista de longa trança loira, briguenta e turrona, disposta a tudo pelo time, incansável nos treinos e nas disputas de bola.
Taís se reconheceu imediatamente.
Ela estava ali naquele papel. Eternizada aos quinze anos de idade. Podia ver toda a sua determinação de adolescente pelo traço preciso de Jota. Era tão fiel que até se pegava se lembrando de si mesma, das suas expressões faciais de garota, um bico zangado, uma ruguinha de raiva em cima do olho direito. E os diálogos? Quase conseguia se imaginar dizendo boa parte das falas dos personagens.
A essa altura do campeonato, dez anos depois, Taís já levara tantos nãos da vida que aprendera a ser bem mais cortês. Traçava novas estratégias além do combate direto. Abaixava mais vezes a cabeça do que alteava a voz. Mas encarava Diana como uma singela homenagem a menina que um dia fora e a pessoa que ela ainda gostaria de ser. Vencendo os desafios de uma sociedade marcada pelo patriarcado.
Estava acostumada a isso. A carreira de jornalista esportiva não era nada fácil nesse sentido. Seus colegas de trabalho debochavam dela as escondida. Muitos atletas se negavam a lhe dar entrevistas. Principalmente os famosos jogadores de futebol. Ela perseverava e vencia cada degrau da escada do sucesso. Aprendera a usar seu sorriso perfeito, seu carisma natural e o insaciável desejo dos homens para arrancar a informação que queria.
Seus olhos azuis iluminavam a câmera. Não foi complicado conseguir um lugar na frente dela. O difícil era convencer os editores de que era capaz de escrever suas próprias matérias. Dedicava-se. Estudava as estatísticas. Sabia mais sobre tipos de toque de bola, regras e contratos assinados do que qualquer um dos seus colegas homem. Mas a desconfiança pairava sobre a sua cabeça a todo o momento. E o medo de errar era enorme.
Finalmente, o acaso lhe dera a oportunidade que tanto desejara. A chance para mostrar o seu talento e deslanchar de vez no meio jornalístico. Por coincidência, recebia essa chance da mesma pessoa que a apresentara ao jornalismo.
Mesmo depois de tanto tempo, ainda guardava no coração um carinho especial por Joaquim. Ainda guardava em casa os desenhos que ele fizera e tudo que lhe escrevera. Na época, sabia que ele seria grande. Não tão grande quanto um sentimento com o qual não souberam lidar. Algo que era mais intenso do que sua cabecinha adolescente conseguira compreender. Mas que ela admirava. E do qual ela assimilara toda a verdade.
Hoje, entendia bem melhor das coisas. Mais madura, sentia na pele a certeza de ter sido alguém muito significativo na vida de outrem. E aquilo a tocava profundamente. Toda aquela situação a tocava profundamente.
Então, quando a produtora perguntou “Are you ready?” pela segunda vez, ela segurou o microfone, respirou fundo e entrou no corredor pronta para reencontrar o garoto que lhe dera seu primeiro beijo.
Joaquim continuava quase o mesmo dos tempos de colégio.  O mesmo rostinho de garoto bom. O sorriso sempre no canto da boca, uma mistura de timidez e autoconfiança que era só dele. Os cabelos escuros e lisos. A postura meio largada. Mas certamente andara malhando. Não era mais o menino franzino de antigamente.
Porém, vestia-se exatamente como antes. As calças frouxas cheias de bolsos. A camiseta descolada por baixo e uma camisa de botões aberta por cima. Os tênis mais confortáveis e rabiscados do mundo. Era bom saber que ele ainda customizava seus sapatos.
Ele já tinha dado cerca de quinze entrevistas quando ela entrara na sala. Estava sentado em uma daquelas cadeirinhas de entrevista com o cartaz do filme por detrás. Conversava animadamente com os seus produtores em inglês. Não a viu chegar. Taís também não se sentiu à vontade para interromper.
A produtora, sem muita paciência, empurrou-a sala adentro. E Joaquim finalmente a viu. Ela acompanhou o semblante dele mudar com o reconhecimento. Viu que analisava a pessoa que ela se tornara.
Não passava de uma menina descabelada da última vez que se viram. Agora era uma mulher de salto alto, corte Chanel e calça skinning. Usava maquiagem e microfone. Era uma adulta de vinte e cinco anos tentando ser alguém na vida. Bem diferente dele que já era alguém. Alguém famoso.
─ Taís... – Ele abaixou o olhar em sinal de respeito. Um gesto tão dele que foi como se tivessem estado juntos ontem. – Você está estonteante!
─ Obrigada. – Disse ainda sem jeito. Sem saber bem o porquê, sentiu a necessidade de encostar nele. Saber se era mesmo real. Hesitou com vergonha, mas perguntou mesmo assim. - Posso te dar um abraço, Jota? – Pela forma como ele colocara as mãos nos bolsos, sabia que também sentira exatamente a mesma coisa e também tentava se controlar por vergonha.
─ Por favor. – Ele abriu os braços e ela correu para abraçá-lo da maneira mais forte que conseguiu.
─ Que saudades de você! – Seu coração disparara. Nunca imaginara que fosse se sentir assim.
─ Também senti muito a sua falta... – Disse praticamente em seu ouvido a apertando bem dentro dos braços.
─ Obrigada pela entrevista. – Não queria sair daquele abraço, mas o momento tinha tempo contado. – É muito importante para mim.
─ Era o mínimo que eu deveria fazer por você, minha musa inspiradora. – Jota sorriu e se afastou. Mostrou a cadeira de entrevistadora a ela. Taís respirou fundo novamente e se sentou. – Não sei se você conseguiu perceber alguma semelhança entre minha personagem principal e alguém que conhecemos...
─ Eu me sinto lisonjeada. – De maneira displicente, Taís segurou na mão esquerda de Joaquim que pousava no braço da cadeira. Ele segurou a mão dela com carinho, detendo-se em cada detalhe, no esmalte de cor forte nas unhas bem tratadas, nos dedos longos, na ausência de anéis.
Ao segurar a mão de Taís, Joaquim deixou à mostra a parte inferior do antebraço que a camisa não cobria. E lá estava ele, tatuado de verdade, o escorpião que tantas vezes ela o vira desenhar ali.
─ Então, você fez mesmo essa tatuagem? – Passou a mão delicadamente pelo desenho.
─ Claro. – Olhou fundo dentro dos olhos dela. Taís até perdeu o fôlego. A presença inteligente de Joaquim voltava a mexer com ela de uma forma diferente. – Certas situações marcam a vida da gente para sempre. A pele é a melhor tela para expressar esse tipo de coisa.


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