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sábado, 16 de julho de 2016

Relicário

Tudo é cíclico. Vai e volta. Assim como as marés e o movimento dos planetas, as histórias tendem a se repetir. Vendo a afilhada enfrentar a entrada do colégio pela primeira vez, Maria Lúcia reconheceu tanto de si mesma que até ficou emocionada.
A vida de Laura vinha sendo, desde cedo, uma mistura equilibrada entre fracassos e conquistas. Exatamente como a vida de todo mundo. Ela não reclamava. Não por isso.
Seu pai a abandonara quando ela nem tinha um ano. Com quase onze, estava cansada de procurar e insistir. Que seguisse seu caminho. Estava muito bem apenas com a mãe. Reconhecia o esforço dela, do tanto que trabalhara para passar de manicure à dona de salão em tão poucos anos.
Laura sabia o quanto a mãe se esforçava para lhe dar um futuro melhor. Sabia que Isaura não media sacrifícios para que sua filha conquistasse tudo que desejava. E era por isso (e também pela ajudinha dos seus padrinhos, Maria Lúcia e Vinícios) que ela estava ali no Colégio Santa Inês.
Diante daquela construção monumental, Laura ofegava. Aquele colégio era a porta de entrada para a realização de todos os seus sonhos. Queria estudar. Naquele momento, queria ser médica. Mas apenas porque aquela era a carreira que todos diziam que mais precisava de estudos. Laura estava aberta para um mundo de possibilidades, decidiria de fato quando conhecesse as opções.
O Colégio Santa Inês era um dos melhores do país. Dali saíram artistas famosos, saíram cientistas, médicos, políticos, atletas. Tudo era possível para quem cruzava aquelas portas. Respirou fundo, deu uma olhada no uniforme para ver se estava tudo no lugar e deu o primeiro passo, com o pé direito.
Nem tudo era como Laura imaginava que fosse. Algumas coisas eram ainda melhores. O colégio era lindo. Chegava até a esbarrar nas colunas de tanto que se perdia olhando para os detalhes góticos da construção antiga. Era tão grande, mas tão grande, que ela gostava de imaginar o quanto de sua pequena cidade natal caberia ali dentro. Quadra, piscina, teatro, centro de artes, parquinho de educação infantil, sala de música, laboratório disso, daquilo e daquilo outro também, coral e jornal. Quantas vidas precisaria para dar conta de tanta experiência?
Laura era dessas meninas empoderadas com um discurso cheio de autoestima e relativização da meritocracia. Ainda assim, ela ficou com medo quando a professora de Geografia, na primeira aula, começou a falar. Estava acostumada a ser a melhor da turma. Estava naquele colégio com uma bolsa de estudos. Mas nada a preparara para uma discussão acalorada sobre a atual configuração dos grandes blocos econômicos. Mal identificava aquele monte de siglas que seus colegas de sala pareciam conhecer tão bem.
Sentiu vontade de chorar, pois como a professora disse, era apenas uma revisão, aula mesmo, somente no próximo encontro. Quase uma hora de desespero depois, o professor de Biologia entrou. Ele apresentou a disciplina que era nova para a turma. Laura respirou mais calma. Pelo menos, uma novidade para todos, um começo igual a todo mundo.
Quando o professor disse que ia começar a explicar a unidade, Laura tirou o seu estojo da Pequena Sereia repleto de canetas e lápis incríveis que sua madrinha tinha dado. Estava ansiosa para usá-lo. Para inaugurar seu caderno. Foi então que as luzes se apagaram e o professor começou a tocar no ar, mexendo com uma lousa interativa. Ele falava sobre os ciclos biogeoquímicos dos elementos e havia um modelo projetado no ar. Nele, o oxigênio e o gás carbônico oscilavam entre, nuvens, vulcões, rios e animais. Laura se desesperava tentando dar conta de copiar tudo até que alguém lhe disse que o professor ia mandar aquele material por e-mail. E-mail. Laura nunca precisara de um e-mail na sua escola antiga.
No intervalo, a ficha tinha caído. Não pertencia àquele lugar. O seu sanduíche de atum contrastava com os smartphones de última geração. Aqueles meninos falavam inglês fluentemente, alguns tocavam piano, outros disputavam campeonatos de equitação, passavam férias na Disney ou em Fernando de Noronha. Ela mal conhecia a cidade grande e nunca viajara de avião.
Quis realmente voltar para casa.
Lembrou-se da madrinha, ela lhe disse como foram difíceis seus primeiros anos. Não podia imaginar o quanto, mas agora fazia ideia. Malu lhe dera um estojo da Pequena Sereia. Laura nem gostava de princesas. Aceitou porque a madrinha lhe dissera ser sua princesa favorita. Porque Ariel sempre lutou pelo direito de pertencer a mais de um mundo. Agora ela entendia o que isso significava.
O rosto amigo de Alice a acalentou. Não estava sozinha. Precisaria fazer bastante esforço, mas conseguiria se encaixar. A amiga a chamou para o seu parquinho favorito. Alice estudara naquele colégio a vida inteira. Laura estudava no prédio dos grandes e dos adolescentes. Ela não deveria mais brincar em parquinhos. Mesmo assim, subiu em um brinquedo de escalar que parecia uma torre. Ficou lá pendurada. Vendo as outras crianças mais novas que ela brincarem.
Foi quando um garoto da sala dela, um loirinho de sardas perto no nariz, subiu no brinquedo com tamanha velocidade, fugindo de um grupo que corria atrás dele, que pisou na sua mão. Laura, por reflexo de se proteger, acabou se desequilibrando e caiu de costas no chão. O garoto olhou para ela, meio sem saber o que fazer, mas decidiu continuar correndo do grupo de amigos.
Alice veio em seu socorro. Ajudou Laura a se livrar de parte da areia. A queda não foi grande, porém, foi feia o suficiente para que alguns adultos viessem verificar se ela estava bem. Laura ficou com vergonha.
─ Garoto idiota! – Alice disse. – Você quer ir na coordenação denunciá-lo? Não se pode correr por aí fazendo parkour como se não existisse mais ninguém no mundo...
─ Parkour? – Não sabia nem o que significava, como é que ia denunciá-lo.
─ Um nome bonito para sair se pendurando nas coisas...
Laura achou melhor não ir para a direção no primeiro dia de aula. Não acontecera nada demais. Estava bem. Razoavelmente limpa. E não precisava de uma inimizade. Preferiu entender que se tratava de um acidente. O intervalo acabou e ela voltou para a sala.
Esperando na porta. O garoto do Parkour. Estava com um grupo enorme. Todos pareciam idolatrá-lo. Ele sorriu quando a viu, não era um sorriso amistoso. Laura estreitou os olhos.
─ Você caiu como uma jaca podre. – Todos os coleguinhas riram da bobagem que ele dissera.
Podia ser uma caipira. Podia ser a menina pobre com bolsa de estudos. Mas, definitivamente, não fora criada para aguentar desaforo de menino. Não seria usada. Nem mesmo numa tentativa chula de autoafirmação masculina infantil. Em um movimento rápido, Laura colocou o antebraço no pescoço do garoto. Ele quase sufocou. Precisava ficar na ponta dos pés para respirar. Não esperava o golpe.
─ Escuta aqui, metidinho, se você quer mostrar um espetáculo para os seus macaquinhos de auditório. – Ela encarava os outros garotos que estavam boquiabertos. – Saiba que vai precisar pagar o meu cachê, porque ninguém nessa sala, e nem nesse colégio vai ser capaz de me prender numa jaula ou me transformar numa aberração. Entendeu? – Só então ela o soltou.
O garoto recuperou o fôlego e não tirou mais os olhos dela. Laura foi para sua carteira e ouviu duas colegas conversarem sobre aquela baboseira de sempre, sobre como os meninos tratam mal as meninas que eles gostam para chamar a atenção. Nunca gostara daquilo. Estava na hora das mulheres recusarem certos tratamentos. Estava na hora de separar carinho de agressão.
Assistiu ao restante das aulas com uma dose extra de confiança. Ia vencer. Era determinada o bastante para conseguir.
Na manhã seguinte, completamente espantada, Laura recebeu um bilhete carinhoso com um pedido de desculpas e uma rosa branca do garoto que ela agora sabia se chamar Igor.
Porque, afinal, a vida encontra várias formas de se repetir, mas algumas coisas simplesmente precisam mudar.


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