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domingo, 23 de junho de 2013

RELICÁRIO



A paisagem continuava igualzinha. Nada mudara naqueles cinco anos. Nada é exagero, ela era outra. Diz-se que o homem não se banha duas vezes no mesmo rio. Pura verdade. Nunca será a mesma água, nunca será o mesmo homem. Maria Lúcia não poderia mais ser a menina que deixara aquele lugar.
A paisagem, entretanto, fazia surgir em seus olhos uma lágrima discreta. Às vezes, a infância não nos abandona por completo. Era esta a sensação que a acompanhava passando por aquela estrada tantas vezes percorrida. Era a primeira vez que ela vinha à casa do seu pai dirigindo um carro, embora conhecesse o caminho, não era exatamente a mesma coisa.
Nos anos que passou nos Estados Unidos, prometeu mil vezes vir nas férias. Mas as férias nunca vieram. Eram tantas oportunidades imperdíveis. Cursos, palestrantes, oportunidades de estágio, que um ano virou dois, três, cinco. E ela não voltara ao Brasil nenhuma vez sequer. Não fosse a família ter ido visitá-la, morreria de saudades.
Saudade absurda como a que estava sentindo da afilhada e da melhor amiga. Isaura e Laurinha não teriam condições de arcar com uma viagem internacional. Passaram tempo demais apenas trocando e-mail. Então, desejava imensamente o reencontro com as duas. Tanto, tanto, que adiantou o retorno definitivo para casa em dois dias para poder estar com a afilhada no seu aniversário de seis anos. Isaura não fazia ideia de que chegaria de surpresa.
Aliás, nem o pai fazia ideia de que ela já voltara para casa. Maria Lúcia simplesmente alugara um carro no aeroporto e estava na estrada. Fora estranho, tivera que pedir uma permissão internacional para dirigir, não tinha a carteira brasileira de habilitação. Morara fora por muito tempo a ponto de se sentir estrangeira no próprio país.
Mas esse foi um sentimento que passou rápido, pois assim que ouviu as primeiras palavras em português, seu coração bateu apressado. Chegara, ali era o seu lugar. Não voltaria nunca mais ao estrangeiro, a não ser a passeio. Não se arrependia, é claro. Tivera muitas oportunidades. Crescera como profissional de uma maneira que o Brasil não podia proporcionar, mas o preço cobrado era muito alto. Ficara longe demais daqueles a quem amava.
Era bem por isso que aquelas paisagens lhe traziam lágrimas nos olhos. Saudades. Aprendeu amargamente que certas pessoas deixam marcas profundas nas personalidades. E não pensava esse momento em ninguém da sua família.
Ao passar pelo restaurante na beira da estrada, onde anos antes pararam para lanchar numa noite fria, o coração deu um pulo e o nome dele veio ao lábios sem encontrar força para sair. Não tinha coragem suficiente par dizê-lo. Pensar nele era difícil. Pronunciar seu nome tornaria aquela dor real demais.
Mesmo assim parou na lanchonete. Estava cansada da viagem. Nunca dirigia tantas horas assim. Precisava esticar as pernas, comer alguma coisa A lanchonete parecia ser o melhor lugar. Faltava pouco mais de uma hora até estar nos braços carinhosos da avó.
Como acontece sempre nessas lanchonetes de meio de estrada, tudo continuava exatamente no mesmo lugar. Ela sentou, pediu um misto-quente, sanduíche tão brasileiro, um guaraná e aproveitou os momentos e as lembranças.
Estava decidida: iria procurá-lo, pedir perdão, implorar pelo seu amor. Ele não diria não. O sentimento que os unia não era uma coisinha qualquer. O que eles viveram estava impresso na alma. Impossível de esquecer. Precisava apenas de uns dias para se estabelecer. Para criar coragem de encarar aqueles olhos verdes.
Pagou a conta. A tristeza passara. A decisão de lutar lhe acalmava o coração. Não era mais a menina insegura. Assistira vidas demais se perderem naquele hospital até entender que um segundo pode decidir tudo. No jogo da existência, as apostas são altas. Ela não estava mais disposta a blefar, muito menos estava disposta a perder.
Deu partida. O carro estancou. Alguma coisa estava errada. Mesmo assim, com algum esforço, pegou. Ela não conhecia bem os carros brasileiros. Se não fosse por um namorado, jamais teria sequer aprendido a passar marchas, estava acostumada a carros automáticos.
Aquela falha lhe deixou meio insegura, mas faltava pouco tempo até a casa do pai. Respirou fundo e acreditou que daria para chegar. Enganara-se. Vinte minutos depois, o carro parava de vez. Maria Lúcia fez o que pôde dentro dos seus poucos conhecimentos em mecânica. Em pouco tempo, entretanto, desistiu e ligou para a seguradora. Estava presa na estrada por pelo menos duas horas.
Ficou sentada olhando para o celular. Não sabia se ligava ou não para o pai. O que ele poderia fazer, não é mesmo? Apenas esperar com ela pela seguradora. E ainda estragaria a surpresa. Se não fosse demorar muito, ela mesma esperaria.
Malu pegou o seu tablet e começou a ler um livro qualquer. Nem deu por conta do tempo. Por isso, quando um carro estacionou no acostamento logo atrás do seu, acreditou que se tratava da empresa de aluguel.
Ela não conseguia ver o rosto do funcionário, mas achou o carro muito elegante para uma seguradora. O rapaz usava uma calça social preta e uma camisa de botão de manga longa que ele ia dobrando até o cotovelo, enquanto caminhava até a janela. O traje não era muito apropriado para a ocasião.
─ Moça, você está com algum problema? Eu posso ajudar?
Foi somente quando aquela voz chegou ao seus ouvidos que ela entendeu do que se tratava. O coração queria saltar pela boca. Claro que ele também viria para o aniversário de Laurinha. Claro que ele ajudaria qualquer pessoa parada com problemas mecânicos no meio da estrada.
Ela sentia todo o seu corpo tremendo. Precisava criar coragem e baixar o vidro. Precisava encarar os olhos muito verdes e muito claros de Vinícios. Ansiava por isso até. Mas a menina insegura de outrora a impedia de se mexer. O corpo inteiro travara.
Ele já colocara as mãos na janela do carro. Aquelas mãos tão queridas, tão amadas. Ela percorreu com os olhos cada detalhe das mãos do rapaz que ela um dia amou tanto. O rapaz, como ela podia ver através do fumê do carro, tornara-se um homem. Um homem belíssimo. Um homem com uma aliança na mão direita.
Vinícios insistia do lado de fora. Solícito. Educado. Como sempre. Perguntava se ela estava bem. Se ela precisava de ajuda. Não podia vê-la direito. Ela não conseguia se mexer. Mas aquela aliança atirara na sua cara a verdade. Maria Lúcia precisava tomar uma atitude antes que o anel migrasse da mão direita para a esquerda. Baixou o vidro decidida a vencer.

─ Malu? – Vini não estaria mais surpreso se encontrasse o espírito de Michael Jackson dentro do carro.

3 comentários:

  1. Respostas
    1. Relicário são textos aleatórios contando detalhes dos personagens que não aparecem nas histórias. Não é exatamente um livro, até agora são apenas 9 textos. Eles estão todos espalhados pelo blog.

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  2. Haaaaaaaaaa' eleees tem que ficar juntoooooos... E outra, se a dona da aliança for a enjoada da Tais eu vou ficar muito decepcionada u.u

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