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sábado, 18 de maio de 2013

RELICÁRIO


─ Por que é que você está chorando?

Aquele menino de olhos verdes imensos se aproximou dela sem pedir licença. Vinha segurando um saco enorme de Cheetos e comia sem dar a mínima para a quantidade de calorias no pacote. Ele era magro, esquelético, um saco de ossos, na verdade. Mas aqueles olhos, nossa, que olhos! Eles tinham uma fúria. Uma coisa meio diabólica. Sei lá. Era como se aqueles olhos guardassem todo o ódio do mundo.
Por um instante, pensou em ter medo dele.
─ É muda, menina? Eu perguntei por que é que você está chorando? – O tom de voz era grosseiro, só que algo ali naquele quadro não parecia real. E ela era boa em observar pessoas. Tinha só oito anos de idade, mas era boa em reconhecer mentiras. E o menino na sua frente era uma farsa. Podia apostar sua coleção de revistinhas da Turma da Mônica que era.
Para começo de conversa, dos meninos idiotas da sala dela que estavam jogando futebol, parecia que somente ele percebera que ela estava chorando. E olha que ela disfarçava muito bem. Sabia chorar por dentro com um sorriso nos lábios e convencer até o seu avô de que não ficara magoada com as brincadeiras sobre o seu peso.
Há quem diga que a infância é o melhor tempo da vida. Ana Maria sabia que isso não era a verdade. Por conta de uns quilinhos a mais, ela descobriu muito cedo que a maldade humana se esconde nos rostinhos angelicais de menininhas de bochechas rosadas e rabos de cavalo. Descobriu que o diabo deve ter por volta de oitos anos, porque ninguém é tão ruim quanto às crianças dessa faixa etária.
─ Não estou chorando. – A menina se levantou zangada. Limpou as lágrimas com as costas das mãos. Era maior do que ele.
─ Está sim. – Ele balançou a cabeça muito ciente de que estava falando a verdade como fazem todos os garotos de oito anos que estão falado a verdade. – Você está com a cara toda vermelha. Está fungando. E isso aí na sua mão são lágrimas. Você está chorando sim. – Empurrou um punhado de Cheetos na boca.
─ Estou doente. Estou com dor de cabeça. – Usou a justificativa da mãe para fugir de todo os problemas. Ninguém pergunta mais nada quando a outra pessoa está doente.
─ Mentira! – Os olhos verdes do menino, muito escuros, estavam olhando direto para ela. Para dentro dela. A maneira como ele disse que era mentira também a assustara. Havia raiva demais naquela palavra. Não era comum ver crianças com raiva. A maldade delas era por prazer, não por raiva. O menino tinha raiva. Mais uma vez o medo veio na garganta. Mais uma vez ele não chegou na cabeça. Precisava se lembrar que sua primeira impressão foi a de uma farsa.
─ Não sou mentirosa. – Ana Maria o encarou. Devolveu o olhar com a mesma raiva. Não era comum ver crianças com raiva, mas ela conhecia esse sentimento. Era muito fácil deixar ele vir. Ela tinha tantos motivos para ter raiva que se aquele menino queria brigar, que brigassem. Descontaria naquele saco de ossos todos os insultos, todas as brincadeirinhas das menininhas das bochechas rosadas sobre o seu peso.
─ É sim. – Ele continuava com toda a razão do mundo. – Você estava chorando porque aquelas meninas te chamaram de rolha de poço, de baleia, de balofa...
─ E você? – Ela interrompeu a lista de xingamentos que já conhecia de cor. – Veio aqui me aborrecer também? – Gritou com ele.
Ela desabou no chão. Não segurou mais as lágrimas. Estava tão cansada daquilo tudo. Por que ela não podia ser magra como as outras meninas? Por que ela tinha de ser a fofinha da mamãe? A gordinha da vovó? A pesadinha do papai? Ela só queria que por um instante ela pudesse ser somente a Ana Maria. Não compreendia, na sua meninice, por que o seu peso incomodava tanto as pessoas. Ia descobrir depois que o que tanto incomoda é a diferença.
O menino sentou-se do lado dela. Ficou ali calado. Não a tocou. Não tirou brincadeira. Ficou comendo o Cheetos tubinho por tubinho. Os alunos estavam indo embora. Nem os pais dele nem os pais dela apareceram. Os pais dela estavam trabalhando feito loucos para comprar um apartamento, a escola nova toda chique levara boa parte do orçamento deles, mas era prioridade. Já tinham conversado com ela sobre um transporte escolar, mas não haviam tomado providências, portanto, vinha esperando bastante por eles. Os motivos da espera do menino ela não conhecia.
Ficaram os dois ali por um bom tempo. Ela chorando. Ele comendo Cheetos. Até que ela se acalmou e ele ofereceu o salgadinho inclinando o pacote na sua direção. Ana pegou um punhado de tubinhos. Estava com fome. Agradeceu com um sorriso e tomou um susto, os olhos do menino não estavam mais escuros. Continuavam verdes, mas agora eram claros, translúcidos.
─ Meu pai morreu. – Ele disse. Disse com a mesma simplicidade que se diz que se comprou um pacote de bolachas no supermercado. Ela não sabia o que dizer nessa hora. Não sabia ao certo o que era a morte. Nunca perdera ninguém. Mas vira em um filme que se dizia “sinto muito”.
─ Sinto muito... – Hesitou. Não se lembrava do nome dele.
─ Vinícios. Meu nome é Vinícios. E o seu? – Continuavam comendo o pacote de Cheetos, cúmplices, velhos amigos, como só as crianças sabem ser em tão pouco tempo.
─ Ana Maria.
─ Eu não achei legal o que aquelas meninas fizeram com você.
─ Também não achei.
Mais tempo. Mais Cheetos.
─ Você vai falar com a diretora? – Ele retomou o assunto. – Elas empurraram você do escorregador. Você poderia ter caído.
─ Mas eu não caí. E nem vou cair, Vinícios. Não é qualquer magricela que vai me dizer o que eu posso ou não posso fazer nessa escola. O escorregador não é delas. O meu pai também paga essa escola. Eu também tenho o direito de usar. Sendo gorda ou sendo magra. Não é verdade?
─ Não sei. Meu pai não paga essa escola.
─ Desculpa. Eu me esqueci.
─ Tudo bem. É meu avô que paga...
─ Ah! Eu gosto do meu avô.
─ Eu detesto o meu.
Mais Cheetos. Mais tempo.
Os tubinhos finalmente acabaram, mas aquela amizade estava apenas começando.

2 comentários:

  1. curti! e cadê o livro? vc não me mandou, ou não chegou...

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  2. É muito parecido com uma parte da minha infância,gostei muito.

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